A ciência pensa e cria o futuro, ouvi dizer por aí. É por isso que hoje sonhei que quero comprar cientistas.
Não era tão bom andar sempre com cientistas no bolso para qualquer eventualidade? Até para aquelas que ainda nem estamos a imaginar. Tipo aqueles génios ou grilinhos falantes que nos podiam acompanhar e aconselhar a qualquer altura.
Sim, este item que agora quero acrescentar aos meus gastos mensais não é inocente. Foi depois de perceber como comprar um poeta pode mudar o mundo, iluminou-me o Afonso Cruz numa das suas obras, que imaginei esta lista de compras. Um cabaz que qualquer sociedade e democracia devia ter: cientistas, poetas, artistas, músicos, filósofos, criativos, sonhadores. Teríamos apenas decidir se a granel, em packs, com ou sem saco, mas nunca em promoção.
As nossas estantes iam estar cheias de ideias, de pensamentos, de perguntas, de dúvidas e de «saltos imaginativos» que nos fariam avançar. A espuma dos dias, o frenesim citadino, e todos os clichês que podemos poetisar do andar na roda do hámster, iriam ser mais refletidos, questionados, com o empenho de quem quer apenas melhorar. É que até sei que numa conversa entre cientistas e poetas íamos perceber que, na realidade, estamos efetivamente todos a fazer o mesmo: criar futuro. E nem falo de como cientistas são poetas, ou vice-versa, ou não seremos nós todos um monte de coisas? E este monte de coisas que somos é que me faz sonhar e até defender que podemos ter uma sociedade melhor, mais forte, inclusiva, com voz, ciência, poesia, democracia.
A discussão sobre a relação entre ciência e democracia ganha sempre importância quando ambas estão em crise (ou seja, quase sempre). E ao pensar em mais razões para ter cientistas numa lista de compras para a democracia, consigo chegar a mais umas quantas para além apenas da simples beleza da descoberta. Contaram-me, um dia, que vivemos num mundo VICA, que pode ser um bom nome de imposto ou num mundo mais divertido uma sigla de super-heróis.
O que cada letra traz é então «Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade». As últimas três, o conhecimento científico conhece bem, e, a primeira, lidamos nós frequentemente nos desafios, sociais, económicos e ambientais. Assim, para lidar com este sistema complexo parece cada vez mais necessário uma interação frutífera entre a ciência e as políticas públicas.
E esta não é uma interação fácil, principalmente na tomada de decisão. Pensemos, por exemplo, no caso das alterações climáticas, toda a controvérsia e implicações sociais e políticas que este tipo de decisões tem, parte também com uma base científica que alimenta e sustenta a problemática. Ou até no que foi a gestão de uma pandemia, e do seu impacto no nosso dia a dia, nas decisões individuais ou coletivas.
E se para fazermos o nosso orçamento para comprar cientistas tiver de apresentar números, também os tenho. Nas últimas décadas, apregoamos o grande percurso na ciência e na educação em Portugal, e que nos conduziu a resultados de grande destaque.
Alcançámos investimentos históricos em ciência, mas ainda assim a investigação representa cerca de 1,7 % do PIB investido, quando a média europeia ronda os 2,6 % do PIB. E há um objetivo de chegar aos 3 % até 2030, com uma estratégia que olha para uma economia assente em educação, conhecimento científico, no desenvolvimento tecnológico e na inovação. Parecem boas notícias para as nossas compras, não parecem?
O caminho de milhões entre 1,7 % e os 3 % de investimento terá necessariamente que ser feito fora de uma folha de Excel ou de decretos-lei, e a vontade política terá de se alimentar de uma vontade comum. Seja porque percebemos quanto pode valer um euro investido em ciência, como porque exigimos mais e melhor ciência e deixamos de olhar como algo distante.
Desenganem-se se acham que o que estou a dizer é que vamos comprar cientistas para nos darem todas as respostas aos nossos problemas, e para decidirem tudo por nós. O que estes cientistas de bolso podem proporcionar é bem maior do que isso, e chama-se liberdade.
No final das contas, existem dois pontos essenciais. Um é a esfera individual em que cada um de nós compreende como lidar com a incerteza e com esta incapacidade de prever o futuro, com espírito crítico e sem dogmas impostos, porque vemos a ciência não como algo utilitário, mas como um processo e um modo de olhar o mundo. Seja para quando temos de decidir sobre a toma de uma vacina, para moldar a nossa ação para ser mais sustentável ou para questionar as notícias que lemos.
O outro é a esfera pública, em que os que dizemos ser agentes sociais percebem que o conhecimento científico vai para além do aconselhamento, com peritos, relatórios, observatórios e task forces. Em que políticos, cidadãos, todos e cada um de nós se apropria da ciência e do conhecimento, e se envolve de forma ativa e crítica, tornando o caminho para a construção da democracia será bem menos sinuoso.
Se amanhã sonhar que quero comprar um político, o exercício poderá ser o mesmo. Sem pensar em números, inflação, austeridades ou orçamentos de Estado, mas sim em como este monte de coisas que somos, ciência e poesia, cultura ou política, não está à venda e que os milhões e percentagens investidas criam uma riqueza que nos parece estar a escapar aos cálculos orçamentais.
- Sobre Rita de Almeida Neves -
Rita é Comunicadora de Ciência e uma ativista do poder da ciência em prol da democracia, tem-se dedicado a programas educativos e de aproximação de ciência à sociedade. Bioquímica, partilha a paixão entre as palavras e as moléculas, e nunca a vão encontrar sem um caderno e caneta.