A exploração sonora e o experimentalismo encontram uma nova máxima em Rafael Toral. E se, nesta série de entrevistas, falamos em sentidos da música e na reacção humana ao ritmo e sua sonoridade, não podemos deixar de destacar a forma como a própria música de Rafael, emanada igualmente por instrumentos criados por ele próprio, “passa pelo envolvimento do corpo com o acto de fazer som”. É o swing como informação rítmica que faz, como consequência, a ligação sonora com o espaço envolvente. O resultado traduz-se no total experimentalismo electrónico e jazzistico indo à matriz do que é, afinal, a concepção livre do som. ‘Saturn’ é o seu recente trabalho, lançado este ano, e sem mais demoras vamos lá ao que interessa -- as respostas do próprio Rafael.
Para se evocar um sentimento ou uma emoção através da música, o lado racional pode atrapalhar ou, pelo contrário, ajudar?
Entendo que evocar sentimentos é um trabalho muito racional porque a manipulação de emoções é, essencialmente, técnica. Por outro lado, há que ser sensível aos sentimentos que se pretende evocar, para poder verificar se estão bem evocados. Por vezes, há emoções que surgem na música, mas não as procuro, apenas surgem.
Qual é ou quais são as músicas que fazem o teu corpo mexer?
É um assunto que me fascina, e a noção de música com que trabalho, hoje, passa pelo envolvimento do corpo com o acto de fazer som. Bem, na verdade é a música que toco que mais faz o meu corpo mexer - ao tocá-la. Interessa-me o swing. Entendo o swing como uma maneira muito intuitiva de usar as transferências de peso do corpo como fonte de informação rítmica.
E aquelas que te conduzem a um estado de espírito imediato?
Sei lá, tantas... Um impulso quase eufórico de movimento para a frente, de felicidade pura e propulsão imparável ("Chasin' the Trane", de John Coltrane); um estado de adoração divina com um nó na garganta (Les Voix Bulgares); um estado de repouso inquieto e algo desencantado mas mágico (Stars of the Lid); um estado de nostalgia quase dolorosa e cheia de encanto (Carlos Paredes), etc... São muitas mas não são tantas assim, as músicas que nos transportam instantaneamente.
Achas que o facto da música ser invisível, não palpável, ajuda-a a ser mais intuitiva e, por conseguinte, ter uma outra relação com a nossa consciência?
Creio que não. A intuição é algo que eu entendo como uma maneira pré-mental e/ou trans-mental de lidar com o que sabemos mas não temos acesso e, também, com o que não sabemos de todo. É toda uma outra forma de inteligência que não passa pela lógica racional e que implica uma abertura, uma entrega, uma predisposição para abrir mão daquilo que achamos que sabemos, da segurança, da zona de conforto. Não sei, a música pode ser profundamente intuitiva mas também pode ser demasiado intelectual. Prefiro um equilíbrio integrado dessas dimensões. E também pode ser visualizável e evocar imagens. Mas sim, sem dúvida que nos entra na consciência por outra porta...
Já te aconteceu pensares numa imagem, num ambiente específico ou espaços enquanto compões?
Já me aconteceu uma composição sugerir-me ou remeter-me para um ambiente específico, mas é sempre a música que traz isso, nunca sou eu a levar para a música essas ideias. Tenho que escutar a música enquanto a faço e ela diz-me o que quer ser. Eu tenho que respeitar isso, não adianta obrigá-la a ser o que eu quero. Ela ganha sempre.
Se pudesses desenhar e pintar a tua música, como seria e que cores teria?
A que faço agora poderia ter algum paralelo nas linhas gestuais, algo cantadas, algo lúdicas, algo enigmáticas em algumas pinturas de Miró. Mas algumas peças mais antigas são campos de som como campos de cor e seriam pintadas, talvez, de modo semelhante a alguns quadros de Rothko.
Como é que imaginarias o sabor da música mais especial para ti? Doce, amargo, salgado como o mar, agridoce?
Salgado como o suor e como o sangue e doce como um beijo.
Pensa no cheiro mais importante para ti, aquele que ficou na tua memória. Que música lhe associarias?
O cheiro de solda derretida está muito ligado à construção dos meus instrumentos. O cheiro da madeira cortada, o cheiro da floresta e o do mar, e o cheiro da comida a assar no forno a lenha são indicadores da nossa presença e actividade, mas não consigo relativizar a sua importância. Todos os cheiros são importantes. Bem, mas sim, pelo menos metaforicamente e com forte impressão na minha memória musical, um cheiro que detesto: o cheiro a anos 80.
Achas que a música pode ser um bom veículo para fixar e guardar memórias?
Sem dúvida, disseste bem. Pode ser um fixador de memórias quando se ouve na paisagem sonora de passagens marcantes na nossa vida. E pode guardar essas memórias como se, tocando a música, se tocassem as memórias também. Maneiras misteriosas do nosso cérebro...
Fotografia de Nuno Martins