Em 1995, “António, um Rapaz de Lisboa” foi o ponto de partida da companhia de teatro Artistas Unidos. Uniram-se. A ideia era essa, que as várias artes se pudessem juntar.
Nascida naquela que seria a década também marcada pela companhia ASSéDIO e, posteriormente, pela Escola de Mulheres a Artistas Unidos tinha uma missão: quebrar a corrente centralizada que ainda perdurava, pois, nessa altura, as companhias apresentavam um diretor “muito claro, que ficava anos na mesma sala, a dirigir espetáculos cada vez mais conhecidos e recorrendo, quase sempre, aos clássicos”, conta-nos Jorge Silva Melo, um dos fundadores da Artistas Unidos.
Esta companhia tencionava ir mais longe. Vindos, muitos deles, do cinema, procuravam encontrar “no teatro uma linguagem contemporânea — tal como o cinema o exige — queríamos encontrar argumentos e novas peças de teatro”, começa por explicar-nos Jorge.
Talvez se pudesse assinalar um ponto de viragem. Ou talvez a voz rouca e entusiasta do Jorge nos fizesse sentir isso, enquanto explicava, de forma detalhada e pausada, como esta companhia se foi construindo ao longo dos últimos vinte e cinco anos.
Depois da “António, um Rapaz de Lisboa”, sucedeu-se o espetáculo “O Fim ou Tende Misericórdia de Nós”, textos escritos e organizados por Jorge. Este encenador, ator, cineasta, dramaturgo, tradutor e crítico tinha como objetivo ligar as diversas artes: “logo no início, era um dos nossos vetores principais, quando fizemos ‘António, um Rapaz de Lisboa’, fizemos um filme, um documentário sobre o artista António Paul, meu contemporâneo e pessoa que muito admiro”, recorda o encenador.
Das “artes várias” aos artistas, esta fusão permitia integrar jovens que o encenador acabou por descobrir aquando da rodagem do filme “Coitado do Jorge”: “foi quando descobri os vários jovens atores que percebi que tinha sido escondida uma realidade muito importante para a sua vida futura que era a produção. Tentei que, em todos os espetáculos, os planos de trabalho, os orçamentos da organização dos dossiês múltiplos, que cada vez são mais necessários, pudessem ser partilhados por mim, diretor da companhia, e inequivocamente pelas várias pessoas do escritório, mas também pelos atores, que aprendessem a produzir-se a si próprios”, afirma.
Esta preocupação foi uma missão cumprida. Segundo Jorge, conseguiram incentivar vários atores a construírem as suas estruturas, a libertarem-se da “pata tutelar”, a criarem os seus próprios espetáculos, a defenderem-se junto das administrações e políticas que serviam os teatros. Acima de tudo, a criarem-se eles próprios.
Durante vinte e cinco anos ir contra o teatro que existe foi “criar uma dramaturgia portuguesa atual, irreverente e diferente, ainda que um bocadinho sem casa”. É a partir destas palavras que José nos diz que, neste momento, faz quase o contrário, isto porque é do contra: “Neste momento, estou a recorrer ao repertório contemporâneo contra esta mania que agora existe de só fazer peças a partir de um tema que é a sua própria biografia. Estou-me nas tintas. Contrario a corrente. Se calhar é esse o sentido de missão da Artistas Unidos, contrariar as correntes que a pouco e pouco nós próprios fomos criando e, neste momento, estou na oposição, ou melhor, estamos na oposição.”
O admirável mundo novo da Artistas Unidos
Partindo do “aqui e agora e das peças explicitamente políticas”, a Artistas Unidos não só adotou estreias, acolhimentos e coproduções, seminários e leituras encenadas como cultivaram o Teatro na própria Sociedade, de uma forma mais ou menos implícita. “Queríamos e queremos agir sobre esta comunidade imprecisa, que é as pessoas que fazem espetáculos, pintura, pessoas que fazem artes várias cá.” Jorge parte desta crença felicitando ainda o facto de várias companhias de teatro fazerem peças de diversos autores, que revelou e editou, como é o caso de Franz Xaver Kroetz: “isto significa que o trabalho que nós fazemos, montando espetáculos, publicando livros, fazendo conversas sobre autores está, neste momento, a dar os seus frutos. Está a ser continuado. Partindo de autores que enunciei e cujas peças não conheço, reflete que a partir daquilo que nós conseguimos fornecer, as pessoas continuam um trabalho. Isso enche-me de vaidade, imagine-se”, reconhece.
Ainda que com os problemas de financiamento, de que “todos sabem”, com os problemas de contratação de “que todos sabem”, os problemas de falsos recibos verdes “como todos sabemos” e que esta pandemia veio reforçar, a companhia tenta que haja contratos para 80% dos artistas contratados. É, nesta ótica, que Jorge nos fala de uma equipa fixa que se vai alterando: “há pessoas que querem partir, que querem fazer a sua própria estrutura e vão fazendo outras coisas, tão fartas de mim, mas mantêm-se os sócios, mantém-se basicamente o mesmo”, completa o encenador.
Partindo ainda do acolhimento, é notório o número de companhias e grupos emergentes a que a companhia também dá palco. Trata-se de uma casa deles, “nossa e dos nossos amigos”.
José conta-nos que aquilo que querem fazer é com outras pessoas, ou seja, “não me apetece nada acolher um espetáculo sobre um clássico, apetece-me estar a trabalhar sobre a dramaturgia contemporânea, outros clássicos do contemporâneo com outras pessoas. Há pessoas que estão também a trabalhar ao nosso lado, surpreendendo-me com novas informações, e a nossa casa não é só nossa. Temos dinheiro do Estado para apresentar espetáculos, para criar espetáculos, reservarmos dois meses para poder apresentar espetáculos de amigos, de pessoas que fizeram trabalhos connosco, de pessoas que estão na mesma vontade de fazer um teatro que seja de hoje”.
Quanto à Literatura e à Dramaturgia, é algo que se destaca e que a companhia abraça, até porque para eles é algo que realmente interessa. Não concebem Teatro sem Literatura. No caso da coleção de Livrinhos, publicações da companhia, já vai em cerca de 150 números, muitos deles com duas ou três peças cada. Apresenta cada vez mais assinantes regulares, vendas e recebe mais propostas a cada dia que passa. Tal como Jorge nos diz, atualmente, em Portugal, “perdeu-se o medo de escrever teatro”.
Questionado sobre a realidade que nos acompanha e que, cada vez mais, se faz notar na Cultura, o ator “não sabe” definir como lidar com esta situação — “não sei e não tenho vergonha de o dizer. Está duríssimo. O Teatro é uma coisa que deve ser muito planificada, muito organizada. A ideia de temporada é uma ideia chave para o teatro, para a lírica, para a música, e agora não podemos ter. Estamos num impasse grave, a que o Ministério da Cultura tem tentando responder, mas, as situações antes da pandemia eram de tal modo degradantes, que vai ser muito difícil resolver aquilo que está a acontecer. Veremos, mas não é fácil sobreviver a esta precariedade que agora se apoderou das próprias estruturas”, afirma com preocupação.
Ainda que a visão não seja a melhor, o encenador reconhece que a companhia se sentiu apoiada economicamente, embora continuem a pagar a renda do Teatro da Politécnica sem o poder abrir ao público e tenham diversos espetáculos cancelados. No entanto, Jorge acredita que houve um esforço da parte do ministério para colmatar “alguns dos grandes problemas, mas são apenas alguns dos grandes e estes são mesmo muito grandes”, reforça.
“Esperemos que esta terrível crise ajude a ver que não podemos continuar como estávamos antes. A nossa vida civilizacional organizada tem mesmo de mudar”.
Sobre as dificuldades com que a companhia se depara neste momento, a maior é a de calendarizar. Com a mutação de medidas a cada dia que passa, a necessidade de calendarizar ensaios, espetáculos e espaços é cada vez mais complicada – o seu propósito cai.
Ainda assim, a Artistas Unidos partilha uma peça que estreará em fevereiro, “A Morte de um Caixeiro viajante”.
Em relação ao Teatro da Politécnica, o que será a programação? É uma questão que o próprio Jorge coloca, “neste momento, passo seis horas por dia a olhar para calendários e a tentar perceber como o encaixar. E não sou só eu, são todos os diretores de Teatro. O calendário, neste momento, é a nossa maldição”. Assim responde a si e a nós.
A importância do Teatro, da palavra e da sua representação é mais uma questão que desde o início se fez ouvir na companhia de teatro e que não podíamos deixar passar em branco. Este marco, segundo Jorge, foi fantástico. Aconteceram muitas coisas nos últimos vinte e cinco anos da companhia “e a transformação física dos atores muitíssimo mais disponíveis, muitíssimo mais entregues, com experiências de vida, muitíssimo mais variadas do que aquela que eu conheci quando tinha 20 anos ou 25 anos. Algo absolutamente fascinante!”, reconhece.
Jorge apoia ainda que, “neste momento, a meu ver, temos dos intérpretes mais dotados e mais vivos da cena europeia. No caso de Inglaterra os atores são muito bons, mas são muito marcados pelas escolas e pelos encenadores com quem trabalham. Já em Portugal, como a escola não é tão dominadora, a liberdade é muito grande. Há coisas extraordinárias, desde a escola de Cascais dirigida por Carlos Avillez que fornece todos os anos dezenas de jovens atores, não são muito dotados, mas com uma vontade absolutamente enorme.”
O encenador refere ainda que o facto da própria língua inglesa não se mostrar mais como a dominante é um fator também importante, quando “se chega a casa e se liga a televisão é o português nas notícias, no reality show, nas novelas, nos dramáticos … é o português que domina. E, isso, permitiu ao espectador ouvir e não desprezar a língua que é a sua. Permitiu aos atores aproveitar essa língua como a sua língua expressiva”, completa.
Quanto à evolução, falta conhecimento. Aquele de onde viemos e, por isso, a questão do repertório para o artista, é também voltar a pessoas como Harold Pinter. “Nós não inventamos tudo hoje, não somos génios. Somos a continuação de quem nos abriu as portas. As portas às portas da nossa vida”. O contador de minutos de som terminou. A sua voz deixou de se ouvir. É caso para dizer, assim termina Jorge Silva Melo.
Texto por Patrícia Silva
Fotografia retirada do website da Companhia de Teatro
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