A hierarquia das necessidades humanas, proposta por Abraham Maslow algures a meio do século passado, é provavelmente das presenças mais assíduas nos tradicionais manuais de marketing. E é fácil compreender porquê. Organizada numa apelativa pirâmide, a sugestão do psicólogo norte-americano destaca-se pela sistematização pragmática das elusivas motivações humanas. Da base para o topo, necessidades básicas, necessidades psicológicas e, por fim, necessidades de realização pessoal, são encadeadas numa progressão lógica que dá um sentido unidireccional inteligível ao confuso desígnio humano. Admitidamente, a Pirâmide de Maslow apresenta-se como um esquema visual atraente, inegavelmente simples e eloquente, que parece conter, em si mesmo, a chave-mestra para o comportamento do consumidor. E neste registo singular, tem sobrevivido a um passar do tempo pouco meigo em críticas.
Importa reconhecer que, para o desenho de qualquer teoria minimamente abrangente, é quase inevitável um certo grau de simplificação e de abstração. Caso contrário, seria praticamente impossível o processo de generalização e extrapolação que, de forma genérica, permite a formulação teórica cumprir o seu propósito existencial. Ora, neste ponto em particular, a Pirâmide de Maslow parece satisfazer os requisitos. E com distinção notável. Afinal, num único esquema e com meia dúzia de elementos, parecem resolvidas interrogações existenciais seculares. Porém, mais do que a pretensa simplificação teórica funcional — a tal que facilita uma compreensão abrangente —, a proposta de Maslow, enquanto modelo definitivo, é manifestamente insuficiente. Talvez abusivamente redutora. É verdade que a urgência das necessidades básicas tende a ter precedência sobre os desejos e aspirações superiores. A saúde, ou a segurança, tende a vir antes do entretenimento — trata-se de um imperativo biológico instintivo que, de forma mais ou menos consciente, todos reconhecemos. Mas como bem defende a psicóloga Pamela Rutledge [1], embora Maslow tenha colocado as relações sociais algures a meio da pirâmide, poucas necessidades humanas, das mais básicas às mais complexas, são possíveis de atender sem ajuda do outro. Sem colaboração, por exemplo, o ser humano teria graves dificuldades em assegurar muitas das necessidades fisiológicas básicas das quais depende. Sem integração numa comunidade — o esforço colectivo que sustém a civilização — o tão almejado sentido de segurança seria, no mínimo, uma improbabilidade. E, portanto, mais do que um desejo secundário, como a hierarquia de Maslow sugere, as relações sociais são, explicita Rutledge, imprescindíveis à sobrevivência e ao desenvolvimento humanos.
A crítica de Rutledge coloca em causa, como se percebe, a suposta sucessão linear da hierarquia proposta pelo psicólogo norte-americano, tornando evidente, em sentido contrário, o papel particular das relações sociais enquanto pivô da vida humana. Porém, de forma mais abrangente, tal compreensão orgânica da dinâmica das motivações do indivíduo, no papel de cidadão ou no de consumidor, convida-nos a repensar a rigidez estática que limita o entendimento de muitas outras dimensões da jornada do ser humano. E aqui abre-se espaço, claro, para olhar para o mundo das marcas e para o mundo da Cultura.
O que esconde a pirâmide?
Voltando a olhar para a formulação original de Maslow, dita a lógica que a Cultura deve ser arrumada no topo. Afinal, é no topo que se encontram as aspirações últimas do ser humano. Aquelas que Maslow considerou rematarem a realização pessoal.
Esta disposição é coincidente com a aura transcendental que reconhecemos na arte. E, em certa medida, é coincidente com o preconceito que remete a Cultura para o patamar de capricho de uma elite livre das amarras da existência mundana (e que explica a fragilidade de afirmação do valor da Cultura: afinal, quanto mais longe da base e das necessidades básicas, menos essencial). Ora, tal como as relações sociais, também a Cultura é, mais do que tudo, um mecanismo de progressão, não um destino final. Como tenho insistido, além da fruição imediata — a tal dimensão do entretenimento —, o verdadeiro valor da Cultura está na sua vocação construtiva. Uma vocação particular, capaz de fomentar o espírito crítico e a iniciativa individual, de promover o debate e o desenvolvimento intelectual, de ajudar a projectar futuros. No fundo, de contribuir para uma sociedade mais próspera. E nesse sentido, mais do que um vértice subsidiário e dispensável, a Cultura é — e urge assim ser entendida — uma força estrutural e estruturante, imprescindível ao cidadão e à sociedade.
Já no mundo das marcas, a categorização estática e linear das motivações humanas proposta por Maslow reforça, muito particularmente, a dimensão mais estéril do consumo. Aquela que apela à compra como um objectivo em si mesmo, e que tanto ignora possibilidades positivas, como repercussões negativas. Aquela que instrumentaliza a ilusão de felicidade e do bem-estar em nome do fluxo de caixa. Aquela que, enfim, tende a validar a persecução do lucro, acima de qualquer outra consideração — seja humana, social ou ambiental.
No contexto económico, a contraposição de Rutledge a Maslow ajuda, pois, a consubstanciar uma visão mais positiva das marcas e da própria economia. Uma visão que vai além da estrita supressão linear das necessidades e que compreende o consumo não só como possibilidade de construção pessoal, mas também como de revitalização social e de reinvindicação de cidadania. Quando o consumo deixa de ser o seu próprio objectivo, não abranda, nem encolhe — torna-se, sim, mais consciente. E é a partir dessa consciência que pode, então, participar activamente em todas as outras dimensões que colocam o consumidor no trilho do derradeiro objectivo humano: a felicidade.
É precisamente nesta dilatação do papel da economia que o mundo das marcas e o mundo da Cultura têm, possivelmente, o seu encontro mais feliz. Vejamos. Pensar a gestão de marca para lá da função estrita do consumo implica, também, substituir a tradicional jornada do consumidor — que, como o nome indica, mapeia, em contexto de compra, as etapas que levam o indivíduo à transacção económica — por algo mais próximo do que poderíamos chamar de jornada do cidadão. Nesta jornada do cidadão, a Cultura assume, como vimos, um papel fundamental, mesmo que nem sempre devidamente reconhecido. Um papel que, em nome dos seus consumidores, pode — e deve —, pois, ser participado, promovido e assegurado pelas marcas. Não lhes faltam razões, nem recursos.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.