A língua portuguesa carece de uma ortografia adequada – uma ortografia simples, mas que respeite, simultaneamente, a sua própria índole. Sinal da complexidade do português é a necessidade constante de recorrer a vocabulários ortográficos, a dicionários, a prontuários, para evitar erros de escrita. Qualquer tentativa de simplificação ortográfica nunca conseguirá reduzir a complexidade, as finas subtilezas e audaciosas particularidades do idioma português. E ainda bem. Proceder a uma simplificação drástica seria descaracterizar a nossa língua no que ela tem de mais belo: a sua riqueza e diversidade.
O tema da ortografia da língua portuguesa foi sempre um assunto controverso e, de certa forma, apaixonado. A língua é algo que nos é intrínseco, faz parte do nosso património, tão nosso que todos opinam sobre a mesma e tecem todo o tipo de comentários. Mas insisto: ainda que o Acordo da Língua Portuguesa (1990) esteja em vigor, nunca é demasiado tarde: devemos prosseguir na demanda de um sistema ortográfico que bem se adeque a todos os territórios em que se fala e escreve em português. Do meu ponto de vista, este acordo ortográfico deve ser aperfeiçoado, melhorado. De uma forma resumida, eis os pilares em que uma boa e adequada ortografia se deveria estruturar:
1) Pilar da simplificação
Desde fins do século xix, segue-se uma linha de ortografia simplificada, sempre com ânimo unitário, isto é, de modo que o padrão servisse para todo o âmbito geográfico e social da língua.
Consideramos que a simplificação é imprescindível para qualquer sistema ortográfico, pelo que seria admissível (dado que o Acordo se encontra em vigor desde 2009 e, sobretudo, porque tem sido aplicado no sistema educativo desde 2011) grafias simplificadas como direto, exato, objeto, ação, coletivo, etc., apesar de reconhecer que nos dois últimos vocábulos as consoantes mudas possam vir, de futuro, a influenciar a pronunciação destes vocábulos.
Todavia, um dos pontos problemáticos da nova ortografia é um mesmo vocábulo apresentar mais de uma grafia correta (grafias duplas) com a consequente proliferação da facultatividade na ortografia. Não se trata, afinal, de simplificar. A facultatividade não é uma novidade na língua, mas este princípio vai contra o próprio conceito de unificação da ortografia.
Em prol da simplificação do sistema ortográfico, faria ainda sentido rever alguns casos que podem criar ambiguidades completamente desnecessárias e que apenas poderão ser descodificadas pelo contexto. A conhecida supressão de consoantes ‘mudas’ gera, em determinados casos, homonímias que deverão ser evitadas em qualquer sistema ortográfico que se pretenda simplificado e objetivo. É o caso em que se encontram os pares: aceção (sentido) vs. acessão (consentimento); corrector (quem corrige) vs. corretor (intermediário); espectador (aquele que assiste) vs. espetador (o que espeta); óptica (visão) vs. ótica (audição); recepção (recebimento) vs. recessão (retrocesso). Devido ao risco de homonímia insanável, poder-se-ia ter sugerido a manutenção da consoante etimológica, permitindo a distinção das formas gráficas. A reposição da consoante etimológica em casos destes não seria bem-vinda? Afinal, o próprio texto oficial, no capítulo sobre a eliminação do acento diferencial em paroxítonas que possuem uma homógrafa sem acentuação própria, mantém, por exemplo, a distinção entre pôr (verbo) e por (preposição).
2) Pilar fonético
O critério norteador das novas normas ortográficas na demanda de um padrão ortográfico único é designado pelos redatores do Acordo de 1990 como ‘critério fonético’ (ou da pronúncia). Este princípio fonético, muitas vezes criticado como um critério de fraco valor científico, pretende simplificar a ortografia e reduzir o número de divergências entre as práticas ortográficas portuguesa e brasileira. Como sabemos, este é um critério instável e arbitrário.
A escrita não tem uma função instrumental de mera representação da fala. Trata-se de uma aproximação, a possível. A primazia que é dada ao princípio fonético deve ser, por isso, ponderada. Atendendo a este princípio fonético, a consoante, quando não pronunciada, é eliminada em prol de uma maior simplificação. No entanto, a criação de palavras novas com a aplicação da nova ortografia deveria ser alvo de uma nova reflexão, como é o caso das grafias aceção, receção, entre outros. Se o princípio é unificador, na prática não deveriam existir casos que gerassem grafias diferentes entre as duas normas e, além do mais, que nem sequer existiam no sistema ortográfico da língua portuguesa (como receção, grafia nova de recepção ainda usada no Brasil).
3) Pilar etimológico
Uma ortografia rigorosamente etimológica seria hoje inadmissível por tornar o sistema demasiado complexo. No entanto, há casos em que devemos apelar ao bom senso e regressar às origens, para evitar determinadas incoerências, sobretudo, no plano paradigmático, em formas derivadas como, por exemplo, antisséptico, asséptico ou séptico. Lembremo-nos, inclusivamente, da decisão tomada para o h em posição inicial. Apesar de se tratar de uma consoante invariavelmente não pronunciada em português, o h inicial conserva-se por «força da etimologia» ou «em virtude de adoção convencional». Aqui há, claramente, uma opção conservadora.
4) Pilar da analogia
A analogia deverá ser encarada como um critério complementar e que pode justificar determinadas opções gráficas. Um olhar atento e descritivo do vocabulário português permitirá fazer comparações para evitar determinadas incoerências que, por analogia com palavras da mesma família, são casos únicos, como em Egipto (não Egito) vs. egípcio, egiptólogo, etc., interrupção e interruptor (não interrutor).
5) Pilar da tradição ortográfica ou consagração pelo uso
Há casos em que seria também importante assegurar e respeitar a tradição gráfica do português e preservar certos usos já consagrados, sempre que essa herança fosse vantajosa e benéfica, por exemplo, por clareza gráfica, como é o caso do emprego do hífen em compostos, de sentido opaco, que não são, de facto, locuções, estas de sentido literal, como, por exemplo, calcanhar-de-aquiles.
6) Pilar da exaustividade
Uma condição necessária para a elaboração de um bom, rigoroso e útil tratado de ortografia deve passar pela disponibilização de listas exaustivas que sejam devidamente analisadas e tratadas de forma pormenorizada e mais completa possível por uma equipa de especialistas, que reúna, definitivamente, lexicógrafos, linguistas, tradutores, etc., ou seja, todos os profissionais da língua.
7) Pilar do bom senso
É conveniente e vantajoso definir uma política linguística que seja um instrumento de conservação do vasto património que representa a língua portuguesa, reconhecendo a pluralidade e diversidade do nosso idioma, em que o bom senso impere e cada decisão seja devidamente ponderada e haja uma forte coerência no conjunto da aplicação de novas normas. Uma lição deve estar sempre presente: cada caso é um caso.
A questão que paira no ar: será possível aperfeiçoar o novo acordo?