"Compensation"
Obra literária de Afonso Reis Cabral, originalmente publicada na Revista Gerador 33.
Dedicado a quem em 2020 não pôde filmar no banco da frente
A câmara filma-a sentada no banco de trás do carro. Ocupa um lugar e meio, a voz sai-lhe húmida e arrastada por causa dos barbitúricos. Eunice Kathleen Waynon mostra-nos a cidade da sua infância. Inventa mais do que relembra. Estamos no banco da frente, e bem vemos que ela evita olhar os prédios, os monumentos, os quarteirões que passam. Supomos que as ruas cantem e ela não queira ouvi-las, embora essa melodia esteja demasiado dentro dela para ser filmada.
A cidade de Tyron, na Carolina do Norte, mudou muito desde os anos 30 do século XX – e a Eunice, velha e sobretudo privada da voz, o tempo dói-lhe. Agora nunca poderia cantar “Tomorrow is my turn”, e ela sabe-o.
O carro percorre as ruas; de quarteirão em quarteirão, Eunice vai dizendo os aquis e os alis de quem reinventa a infância.
Sempre excessiva, nunca fez nada pela metade. Dizia-se que os seguranças, ao invés de a protegerem do público, protegiam o público dela. Um dia terá perseguido uma fã à paulada, quem sabe dando-lhe com o sapato depois de esta lhe ter pedido um autógrafo.
No festival de Montreux de 1976, Eunice sussurra para o microfone, confessa não saber explicar quem é, excepto quando canta. E não abre a boca, contrariada. “Canta, mas é!”, berram-lhe das primeiras filas. Eunice prefere dizer-lhes: “Não é bonito, o meu colar?” Pertenceu a uma rainha da Grécia Antiga – e ela exige ser tratada como rainha. Acredita que o silêncio do público confirma a fé naquela informação. Mas o colar é de um ouro inventado que se chama pechisbeque. E Eunice comprou-o num mercado de rua da Libéria, nos intervalos de bater na filha, com quem fugiu para esse país, desencantada da luta pelos direitos civis.
Depois ri-se com a boca demasiado próxima do microfone. Tem um riso de música e quando por fim canta, lembra a grande voz dos anos 50 e 60, das canções imortais como “Don’t let me be misunderstood”, e de hinos como “To be young, gifted and black”. Lembra o seu antigo fulgor revoltado – genial. Sobretudo, ferido.
No carro, algures antes de 2003, Eunice fala pelo nariz. Assoa-se. Não sei porquê, mas queremos guardar o lenço húmido no nosso bolso. Mas seguramos a câmara no banco da frente porque nos compete filmar.
Ainda criança, Eunice atravessava a linha do comboio para ter aulas de piano. Até à adolescência, dedicara-se à música clássica como quem busca redenção ou deseja a liberdade. Mais tarde, foi capaz de virtuosismos como o solo de “Love me or leave me”, e de simultaneamente cantar uma música enquanto tocava outra ao piano; mas nada a extasiava como Bach. Assoa-se de novo. Aos vinte anos, partiu para Atlantic City e viu-se obrigada a tocar no fumo dos bares, onde descobriu na boca larga um novo instrumento. Quase por acaso, a canção.
Antes de o carro travar, conclui que a voz sempre foi o instrumento secundário, o menor dos males. Lembra-a como o elo que a ligava à música, já que fora rejeitada pelas grandes escolas de música clássica. Juillidard que se lixe, pensamos no banco da frente.
Agora, a letra que mais se ajusta a Eunice seria a de “Compassion”: God in his great compassion gave me the gift of song. Afinal, a voz não é instrumento secundário. Ao que parece, surgiu como talento – que ela multiplicou –, e tem algo de compaixão. Na voz há dedos que a afagam.
Mas a canção também tem o nome de “Compensation”. Focamos a câmara na cara da mulher velha cujo discurso nasalado se interrompe. Assoa-se uma última vez e, antes de nos mostrar qual é a dor, finge que não chora.
Diz-nos que lhe faltou a verdadeira companhia. Queria ter tocado tocatas e fugas e todas as exuberâncias que tornaram Johann Sebastian em Bach. Mais do que um dom, oferta de Deus, a voz foi para Eunice uma compensação pelo que lhe tiraram, pelo que não pôde ter. E ela, afinal uma das maiores artistas do século XX, foi incapaz de ultrapassar a tristeza de não ter feito jus ao compositor.
Queria ter sido a primeira grande pianista clássica afro-americana: não conseguiu, tornou-se Nina Simone.
Nascido em 1990, começou a escrever aos nove anos. Tem quatro livros, dois dos quais romances: O Meu Irmão (Prémio Leya 2014) e Pão de Açúcar (Prémio Saramago 2019).
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