No passado mês, o Gerador publicou uma extensa reportagem sobre o passado e presente dos acervos arquivísticos dos órgãos de comunicação social portugueses, da autoria de Sofia Craveiro. Nesse exaustivo trabalho de investigação, que deu origem a quatro artigos, são analisados vários aspetos que nos alertam para o risco real de desaparecimento da memória das instituições de media. No seu conjunto, esses artigos chamam a atenção para uma realidade que é frequentemente relegada para segundo plano: a inexistência de padrões de preservação da informação nos órgãos de comunicação social, assim como as graves consequências provocadas pela ausência de regulação pública na proteção dos acervos dessas mesmas entidades.
Embora a reportagem incida sobre a negligência verificada nos arquivos de media, o que é dito aí é em tudo semelhante ao que acontece geralmente nos arquivos empresariais e associativos ou nos arquivos familiares e pessoais detidos por entidades de natureza privada. Na realidade, é revelada uma tendência transversal ao universo dos arquivos privados, os quais não têm tido o devido enquadramento nas políticas públicas arquivísticas.
Em Portugal, o decreto-lei que define o regime geral dos arquivos e do património arquivístico tem mais de trinta anos (Decreto-Lei n.º 16/93) e deixa omissos muitos aspetos que se colocam aos arquivos na atualidade. Por sua vez, a Lei n.º 107/2001, que estabelece as bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural, embora preveja um instrumento de proteção dos bens considerados de “interesse público” ou “interesse nacional”, em que se incluem os arquivos de entidades privadas singulares e coletivas, esbarra muitas vezes com questões relacionadas com o direito de propriedade privada, dificultando a tarefa do Estado de adquirir ou classificar determinados conjuntos arquivísticos de valor único, como é o caso do arquivo do Diário de Notícias, classificado como “tesouro nacional” em 2022.
A tudo isto, soma-se, ainda, o facto de a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), a quem cabe a execução da política arquivística nacional, confrontar-se frequentemente com constrangimentos de suborçamentação e falta de recursos, que a impedem de cumprir com eficácia desejável o seu importante serviço público.
A existência de uma visão global, alicerçada em políticas culturais sólidas e em enquadramentos jurídico-normativos claros, afigura-se como condição indispensável para a concretização de uma verdadeira estratégia de valorização do património arquivístico nacional. Neste contexto, é fundamental que os poderes públicos estejam devidamente sensibilizados para o papel dos arquivos, enquanto elementos com valor histórico, cultural e social, e que esse reconhecimento se traduza no aprofundamento de instrumentos jurídicos de proteção arquivística, com critérios claros de seleção e avaliação, assim como no reforço de investimento do órgão coordenador.
Seria, no entanto, irrealista pensar que cabe exclusivamente ao Estado o desafio de garantir a proteção do património arquivístico privado. No quadro das atuais sociedades democráticas, a salvaguarda de acervos com relevância histórico-cultural assume-se, cada vez mais, como um elemento fundamental na construção da memória coletiva, assim como na democratização do acesso à informação e ao conhecimento. A missão de preservar o património arquivístico convoca, por isso, a mobilização dos vários atores e impõe redes de colaboração. Desse modo, entidades detentoras, proprietários e demais titulares devem, sob a orientação da DGLAB e de acordo com as boas práticas arquivísticas, adotar uma postura proativa, promovendo sinergias que tenham como fim a salvaguarda dos seus arquivos e a sua plena fruição cultural pela sociedade.
Este ano, em que se assinala meio século de Democracia, representa uma oportunidade única para começarmos finalmente a reconhecer a preservação arquivística como condição para a construção de um país com memória. Porque sem memória não há futuro.