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As políticas públicas que odeiam as pessoas

Vasco Barata, cronista convidado na sequência da reportagem «Onde mora o futuro dos jovens?», fala-nos na incapacidade e falta de vontade de resolver um direito fundamental, a habitação.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de Vasco Barata

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Sabemos, porque o sentimos, a importância de ter uma casa. Condição de dignidade, de segurança e de acesso às coisas mais básicas da nossa vida: alimentação, higiene, relações familiares e sociais, trabalho e saúde (física e mental). Mas ter uma casa não é ter uma cama ou um chão onde dormir, não é viver num T3 partilhado com oito pessoas, não é pagar 70 % ou 80 % do nosso rendimento. Ter uma casa é ter direito «para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar […] com renda compatível com o rendimento familiar». (art. 7.º da Lei de Bases da Habitação). 

O Estado, que tem de garantir este direito, tem tomado todas as medidas necessárias para o prejudicar. Mais do que a história das políticas públicas de habitação (que ajudam, e muito, a explicar o atual contexto), julgo que é útil olhar para a última década e perceber como se privilegiou o negócio, e não os nossos direitos. Quais os motivos para não se ter casa, de a renda nos levar o salário e de as cidades serem para tudo menos para lá vivermos? Avanço com três respostas que, naturalmente, não esgotam este debate.

O primeiro motivo é que todo o quadro legal está montado para favorecer a especulação imobiliária. O período da troika e do último Governo de direita em Portugal acelerou uma série de medidas e programas, com que o Partido Socialista concorda no essencial, que agravaram o acesso à habitação das classes média e baixa. Possibilidade de aumentos de rendas desproporcionais, liberalização dos despejos, contratos de arrendamento mais curtos e sem limites de renda nos novos contratos… Tudo medidas, algumas delas inconstitucionais, que favoreceram a expulsão das pessoas da cidade e um aumento das rendas que ainda hoje se verifica. Num país que vivia com um congelamento de rendas perverso de quatro décadas, e composto por 75 % de proprietários, estas medidas foram contestadas, mas não criaram maiorias sociais robustas pelo direito à habitação (como, por exemplo, a crise da hipoteca em Espanha criou e que agora pode acontecer em Portugal dada a explosão da taxa Euribor e os seus efeitos nos créditos à habitação). A par destas mudanças no regime do arrendamento, criaram-se vários programas que usaram as casas como justificação para outros tipos de vantagens, como os vistos gold e o Estatuto dos Residentes Não Habituais (ERNH). Os primeiros, ligados ao branqueamento de capitais, garantiam um visto de residência a quem tivesse 500 mil euros para pagar por uma casa (a lei mudou recentemente). Como o que se queria era o visto, pouco importava se aquele valor era por um T0 ou por um T5. Criou-se uma mina de ouro para imobiliárias e escritórios de advogados.

O ERNH, por seu lado, fomentou a procura de casa por pessoas de outros países que, para usufruírem da redução fiscal que o programa lhes oferece, adquirem casa no nosso país. 

No entanto, e este é o segundo motivo, mesmo quando as práticas são ilegais (no sentido de contra a lei, e não com nenhum sentido criminal), não houve nenhuma consequência e deixou-se alastrar um problema que fez com que milhares de casas desaparecessem das cidades. Foi o que aconteceu com o Alojamento Local (AL). Sob o manto da economia partilhada, criou-se um embrulho para que o velho parecesse novo e, desse modo, milhares de casas que foram construídas para viver, para habitação, passaram a servir o negócio. O único problema, e foi isso mesmo que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou, é que o artigo 1422.º do Código Civil proíbe que se use uma fração para um fim diferente daquele a que se destina. Ou seja, não eram precisas mais leis, novos quadros legislativos, regulamentos. Bastava que se tivesse cumprido a lei. Infelizmente, Governo e autarquias locais fecharam os olhos e ajudaram um negócio que hoje, em Lisboa, rouba quase 20 mil casas para as pessoas viverem. Aquela decisão do STJ não tem o efeito de acabar com as licenças ilegais que ainda existem; o facto de os poderes públicos estarem mais interessados em ver como protegem o AL desta decisão e não em como devolver estas casas à habitação é sintomático de uma desvalorização total do direito à habitação e à cidade. 

Por fim, o velho problema da falta de vontade política. O que não falta são anúncios e frases grandiloquentes. Há poucos meses, o ministro da Habitação dizia que estava a levar a cabo uma revolução em matéria de habitação. Ficam alguns dados dessa : das 170 mil casas que o Governo prometeu até 2026, ainda só foram entregues mil; sendo que daquelas 170 mil, 26 mil deveriam estar entregues até 2024, por altura dos 50 anos da Revolução de Abril de 74. A par desta incapacidade, que se poderia justificar pela dificuldade em construir (o que também não justifica tudo), há uma tremenda falta de vontade em aumentar o prazo mínimo dos contratos de arrendamento (por que razão temos de viver com a mala sempre à porta?), em regular os preços das rendas (convivemos bem com os quartos interiores a 800 euros?), ou obrigar que todas as casas vazias (em Lisboa, são 48 mil) passem a ter gente a viver. Toda esta incapacidade é acompanhada da narrativa das «respostas multifacetadas», do «não podemos pôr as fichas todas numa política só» ou do «não há só uma solução»; tudo desculpas que significam apenas que irão continuar a garantir à especulação imobiliária a sua fatia deste apetitoso trabalho que é viver de rendas. 

Considero que o que falta é a coragem de enfrentar o conflito político que este tema exige. Nestes tempos, a escolha é entre as pessoas e o mercado. Até hoje, a especulação tem ditado as regras e posto a nu o bem que o admirável mundo liberal faz as pessoas. Os direitos fundamentais são para as pessoas, não para os mercados.

- Sobre o Vasco Barata -
Licenciado em Direito e mestre em Ciências Jurídico-Criminais, é advogado, e ativista pelo direito à habitação na Chão das Lutas – uma associação que reúne ativistas, juristas, advogadas e advogados. É também deputado municipal na Assembleia Municipal de Lisboa, pelo Bloco de Esquerda. É o cronista convidado na sequência da reportagem «Onde mora o futuro dos jovens?».

Texto de Vasco Barata
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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