Inicio uma nova série destas crónicas sem preconceitos, desta vez glosando o tema da fragilidade humana.
Estamos em janeiro. É tempo de fazer balanço ao passado e preparar o futuro.
Do ponto de vista da alimentação e da gastronomia, normalmente este conciliábulo que temos para com nós mesmos - acicatados por influencias de terceiros (melhor dizendo, de “terceiras”) - acaba por se resumir a um catálogo de boas intenções e propósitos de “ano novo, vida nova” que inevitavelmente vão desaguar na dieta e abstenção de gorduras, álcoois e outros derivados que tenham por consequência aumentar o perímetro e o volume da criatura pensante.
Menos sal, acabar com o açúcar, dizer adeus aos refogados, guisados e enfornados. Fugir dos fritos como o diabo da cruz, e passar a acompanhar a comidinha com água da torneira (muito de moda neste momento).
Refiro a história verídica de um amigo que (obrigado pela esposa) mantinha um registo do seu peso no final de cada ano. Esta estatística serviria para medir a evolução da sua força de vontade e aparentemente dar-lhe ânimo para continuar com os sacrifícios.
Mas como a evolução era sempre positiva (muito mesmo) em quilos, o registo rapidamente se transformou num libelo acusatório que era esgrimido com frequência sempre que o casal arrufava. Em conclusão: são hoje muito mais felizes, mas separados um do outro. E eu continuo a dar-me bem com ambos.
Devo dizer que não seria tão fundamentalista. Preferia sabotar a balança…
Isto vem a propósito das pessoas que em casa fazem dieta, mas fora dela avançam com intrepidez pela travessa do pernil assado no forno.
É o medo que guarda a vinha, e são os olhos controladores dos nossos parceiros (“significant others”) que acabam por definir o que comemos. Mas longe da vista, longe do coração, e é à distância que a carne se revela fraca.
Também se passa o inverso, sobretudo para quem sabe cozinhar, vive com gosto a experiência e tem por companhia quem aprecie este estilo de vida. Esses alambazam em ambiente doméstico e nem tanto lá por fora.
Ultimamente não me tenho entusiasmado muito com comeres e beberes fora de minha casa. Pode ser pela antiga razão que era atribuída pelo fiel escudeiro Grilo ao mal-estar constante do seu senhor Jacinto, o príncipe da boaventura: "Sua Excelência sofria de fartura...".
Sofrer de fartura neste enquadramento é estar tão habituado a comer do bom e do melhor que as coisas deixam de nos entusiasmar.
Quando escrevo do bom e do melhor não quero dizer do mais caro e do mais notório. “Bom” e “melhor” em sentido absoluto. Tanto o carapau de escabeche como o pastel de bacalhau com um competente arroz de grelos entram nestas "medições", a par do resto que custará muito mais euros (se calhar demasiados).
Existe remédio mais ou menos infalível para essa maleita da “fartura”.
A cura para a doença – na vertente caseira ou externa - pode ser (devia ser) um mês ou dois de dieta forçada, em que apenas comêssemos saladas e sopas, peixes e carnes magras, grelhados com legumes cozidos. E bebêssemos apenas água. Muita água.
A parca refeição, muitas vezes repetida, teria o condão de purgar o corpo e o espírito, preparando devidamente o glutão para futuros desmandos.
De facto, o que estaria aqui em causa não era – nem por sombras – alterar o regime de vida e criar hábitos de alimentação saudável que acrescentassem teoricamente mais anos ao percurso terreno do sofredor.
O que estava em causa era fazer abstinência que preparasse o corpo e o espírito para novas aventuras de feijoadas e caldeiradas.
Um pouco como aconteceu quando saí da República Islâmica do Irão depois da minha primeira visita (de trabalho) em 2006, estando oito dias a água e coca-cola (de origem turca).
Quando chegámos ao avião da Lufthansa, já no ar, acho que nunca um Tennessee whisky “Jack Daniel ’s” me tinha sabido tão bem... Um ou cinco, já que a recordação desse momento ainda é difusa...
Nada como a dieta e a abstinência para dar valor ao que importa.