Este texto exige um cenário de estória.
Era uma vez uma mãe e um filho. As suas relações eram deveras complexas. Aquilo que podemos designar de “ódio-amor”. Nos momentos em que os corações transbordavam placidez, sorriam entre si como duas almas inseparáveis. No entanto, as piores situações, e também as mais frequentes porque diárias, eram as das injúrias e das violências. Mas seria, a meu ver, muito difícil não tomar a decisão de selecionar qual o lado a defender.
A mãe sofria de uma mania de perseguição. Sempre que saía à rua, julgava que as pessoas a comentavam com a pior das intenções. Em casa, no seu pequeno apartamento, acreditava piamente que a vizinha de cima a insultava. Por isso, como não era de se deixar ficar, rebatia: os palavrões distanciavam-se da boca, em alto e bom som, sem quaisquer hesitações. Iam de uma simples qualificação de “estúpida” aos nomes que deixariam uma meretriz a corar de vergonha.
Nos primeiros anos de vida, o filho assistia a estas explosões coléricas calado, ignorando-as ou afastando-se para não entrar em conflito. Com o tempo, observando o deterioramento do estado psíquico da progenitora, e desejando encontrar estabilidade na sua vida, este hoje jovem adulto já alerta a sua mãe, desaprovando os seus comportamentos. Ela considera a sua posição uma afronta e saca, para não variar, dos seus ataques verbais. Ele inicia todo um processo de mágoa e responde mais agressivamente, dizendo que nada do que vivem é justo para ninguém e que seria necessário tratamento médico urgente. Por vezes, talvez demasiadas vezes, cai no erro de recorrer também a palavras menos próprias, mais ausentes de razão do que de emoção. E a mãe termina a conversa e inicia o combate físico: atira-lhe chinelos, objetos da casa de banho, se estiver totalmente possuída até facas. Não há sangue, mas há arranhões e pisaduras; no final, o choro da mãe, a culpa que o filho se impõe, a melancolia abatendo-se sobre ambos.
Há que dizer que o filho é homossexual. E também tem barriga e peso. Da primeira não se envergonha, a segunda também não é um motivo de tristeza, embora o rapaz reconheça que pode melhorar a sua saúde. Mas a mãe, com um cancro pulmonar cuja atenção a dar deveria ser infinitas vezes superior, tem complexos com a sexualidade e o corpo do seu descendente. Tanto que “gordo” e “gay de merda” passam a ser vocabulário doméstico quotidiano. Apenas “mãe” é a única palavra que perde simbologia, desaparecendo das afetividades que o comum das/os mortais atribuem a estas três letras. Pelo meio, o “amor” perde-se.
Para sempre? Quem sabe… Que estamos perante violência doméstica, podemos concluir que sim. Que a rutura desta relação parece sempre iminente é uma obviedade. Quais as soluções? A psicologia pode explicar, a sociologia pode explicar, as ciências da educação podem explicar… E no que pode a prática consistir?
Este mundo é composto destas incógnitas. A este filho e à sua mãe, desejo que as forças divinas (ela baseia cegamente a sua vida nelas) e a ciência (ele venera a força das mulheres e dos homens do campo da investigação) se encontrem num dia de milagre e de saber.
Possivelmente, será o mesmo que pedir a um gato para usar da sua consciência e tomar banho a cada dois dias.