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Carta do Leitor: Síndrome de Primogénitas Africanas

A Carta do Leitor de hoje chega-nos pelas mãos de Jamila Pereira, que fala-nos sobre a vivência das filhas mais velhas.

Texto de Leitor

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Apesar das restrições sociais sistémicas e das baixas expectativas em relação aos nossos filhos, os pais negros são claramente aplaudidos na nossa comunidade como super-heróis que prosperaram contra todas as adversidades. Ainda assim, geralmente desconsideramos o poder das normas culturais, sexistas e patriarcais implementadas nas suas famílias e como isso pode facilmente fluir através das gerações. Essa forma de paternidade é então inerentemente romantizada como uma característica impecável da nossa educação e normalizada como "típica paternidade negra". Infelizmente, esta forma de parentalidade engloba um desdobramento de sofrimento ou trauma e afeta intrinsecamente a nossa percepção sobre a nossa infância, as nossas responsabilidades e os papéis como pais ou futuros pais. Os nossos pais faziam malabarismos com políticas de respeito, casamentos de conveniência, sistemas de crenças misóginos, infantilização e desumanização ocidentais. Esses aspectos, sem dúvida, impactaram e interferiram na sua capacidade de expressar e explorar todo o seu potencial como seres humanos puros e empáticos.

Então, apoiar-se em padrões culturais, independentemente do seus danos extensos, parece mais acessível e difícil de mudar. Assim, quando os pais se deparam com a presença proeminente da parentificação geracional, compreendê-la como uma forma abusiva de exploração talvez seja incompreensível.

Assim, a dinâmica familiar varia ao longo dos anos e ao longo das gerações em diferentes formas, particularmente no que diz respeito ao abuso emocional. Enquanto alguns insistem em menosprezar, ter comportamentos controladores ou insultar, a parentificação é outra forma de abuso, uma forma altamente encoberta que,muitas vezes, passa despercebida. A parentificação é definida como a inversão de papéis, em que se espera que uma criança seja uma bola de neve e assuma a posição de pai/mãe e cuidador principal dos seus irmãos. Isso implica mudar a sua vida para cuidar dos outros, ser um intérprete de documentos, apoiar os irmãos nos trabalhos de casa, trocar fraldas ou cuidar deles a tempo inteiro. Em outra nota, outras questões podem incluir também esperar que as crianças guardem segredos de família (por exemplo, uso indevido de drogas ou relações extra-maritais), pais que desabafam com uma criança de maneira não apropriada a procurar conselhos e apoio emocional deles ou utilizá-los como mediadores ou escudos entre rixas familiares.

Embora muitas razões possam levar à parentificação, é inegável que, devido às disparidades sociais e económicas existentes, a origem cultural e raça, as jovens negras sejam os alvos mais vulneráveis, abrangendo a diáspora. Como exemplo, a série “Cuties” da Netflix, onde se espera que Amy, uma menina de 11 anos, seja a única cuidadora dos seus irmãos numa idade tenra, enquanto desiste da sua infância.

A romantização de estereótipos como “mulheres negras e suas capas” ou “mulheres negras, as supermulheres” infiltrou-se intrinsecamente nas nossas comunidades desde a era colonial. Portanto, as suas ramificações insidiosamente dominaram muitos lares por meio de estilos parentais e as suas expectativas para as filhas mais velhas. Por serem forçadas a lidar com o aumento das responsabilidades domésticas e, muitas vezes, cuidar dos seus irmãos mais novos, geralmente espera-se que as filhas mais velhas dos lares africanos desconsiderem a sua inocência e infância para atender às necessidades dos seus pais. A necessidade de negar às meninas negras toda a juventude que elas merecem pode resultar numa ansiedade incontrolável, exaustão mental e física, além de ressentimento extenso em suas vidas adultas. Esta experiência é chamada de “síndrome da filha mais velha”. Através de uma lente africana que reconhece o poder da “síndrome da mulher negra forte” e da parentificação, as meninas negras foram prematura e estritamente empurradas para a vida adulta.

Hoje, pela internet, as dificuldades de ser uma filha primogênita numa família africana não podem ser ignoradas. Muitas filhas africanas primogênitas admitem vividamente que atingem uma idade adulta sem um senso de identidade individual estabelecido. Ao longo das suas vidas, elas provavelmente não tiveram ninguém para desabafar. No entanto, espera-se que funcionem como membros produtivos da sociedade, ao mesmo tempo em que equilibram uma vida profissional, social, familiar e as relações românticas.

"Ser a filha mais velha é como um estágio não remunerado para o resto da vida. Mas pelo menos os estagiários recebem crédito." Então, da cultura à aceitação, as filhas primogênitas são educadas e acostumadas a defender o profundo sistema patriarcal e machista que está fortemente enraizado nos lares africanos. Sem escolha, elas dedicam-se às tarefas domésticas, maternidade precoce e à submissão inerente em muitos aspectos das suas vidas. Isso também permitiu que as jovens negras desconsiderassem qualquer traço de vulnerabilidade ou bondade em relação a si mesmas, como se o comportamento de todos ao seu redor fosse uma reflexão das mesmas — sem margem para erro, sem margem para descanso. Ter que lutar por um espaço que sem dúvida é delas, acaba tornando-se cansativo porque explicar a existência delas para além dos objetivos dos pais é uma tarefa sem fim.

Mesmo quando atributos positivos específicos também são fortemente moldados por este síndrome, como generosidade, carinho, ternura e força, não podemos ignorar que eles também podem rapidamente tornar-se em armas de destruição em massa, onde as mulheres descartam as suas próprias necessidades enquanto, constantemente, têm que dar e dobram-se em dois por outros, sem receber um pingo de apreciação em troca. O seu caráter torna-se inerentemente ligado ao dever e esperar, o contrário é simplesmente insondável.

Injustamente, as filhas mais velhas também são inflexivelmente persuadidas a ajudar, estar disponíveis 24 horas por dia, 7 dias por semana e carregam com elas cargas emocionais/físicas, enquanto apagam incêndios na vida dos seus entes queridos. Entretanto, elas também são aplaudidas pela sua “maturidade” e “sabedoria” numa tenra idade. Isto leva a que o síndrome possa ser mesmo racionalizado como uma preparação para um parceiro ainda inexistente no seu futuro. Além disso, muitas podem se sentir completamente dissociadas da maternidade hoje, pois foram forçadas a criar filhos que nunca escolheram ter.

Muitas filhas também desenvolvem características como altruísmo, dificuldade em estabelecer relacionamentos, isolamento, perfeccionismo, necessidade de agradar as pessoas, complexos de culpa, hiper independência, problemas de controlo e ciúmes que podem afetar fortemente as suas vidas adultas. Consequentemente, isso também transcende para as suas amizades ou namoros devido à falta de afeto e atenção que as mulheres podem receber ao crescer. No que diz respeito às amizades, isso pode levar à falta de socialização necessária na adolescência com seus colegas e isolamento. Consequentemente, outro problema é as mulheres receberem esmolas de afeto e  iludirem-se, identificando-as como uma grande quantidade de amor, sem reconhecer que estão a ser manipuladas ou abusadas.Como afirma o artigo da Dra. Tiera Tanksley, “Jovens negros perdem as suas vidas, mas jovens negras… perdem a cabeça”, embora nem todas as primogênitas africanas enfrentem traumas não resolvidos devido à parentificação e aos desafios da infância, esta cultura não pode ser negada. Assim, um passo significativo para resolver e desmantelar esta cultura de parentificação e adultificação em relação às nossas meninas seria reconhecer que internalizamos este síndrome como uma regra de passagem e como isso foi prejudicial para nossas gerações mais jovens. As nossas meninas devem ser validadas e vistas e capazes de descontrair e decidir por elas mesmas quando a idade adulta começa, enquanto guiam os seus destinos. Além disso, muitos destes casos decorrem através de pais que talvez tenham sido parentificados também; mas a falta de diálogo impulsionou a sua existência além da geração deles. Portanto, devemos garantir que, após o seu reconhecimento, que haja um espaço aberto para estabelecer limites, procurar terapia, viver uma vida sem culpa, examinar os relacionamentos com os outros ou estabelecer conversas equilibradas e saudáveis ​​que transcendam a transferência de culpa. Devemos reconhecer que escrever guiões para elas antes mesmo de nascerem deve ser visto como a maldição intergeracional que elas são.

Se quiseres ver um texto teu publicado no nosso site, basta enviares-nos o teu texto, com um máximo de 4000 caracteres incluindo espaços, para o geral@gerador.eu, juntamente com o nome com que o queres assinar. Sabe mais, aqui.

Texto de Jamila Pereira

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