"O Gambuzino Perplexo"
Obra literária de Cláudia Andrade, originalmente publicada na Revista Gerador 32.
O New Age está entre nós. Vende livros, revistas, sessões e terapias de várias ordens. É interdisciplinar, inclusivo e democrático, contém elementos de psicologia, astrologia, ingredientes teológicos do cristianismo, budismo, hinduísmo e técnicas de best-selling. Estas são as coisas em que reparei. Não sendo eu consumidora habitual do conceito New Age, imagino plausível uma lista mais alargada de interdisciplinaridades.
Este cocktail aparenta ter como mote o acesso à espiritualidade fora do âmbito um tanto claustrofóbico, sensaborão e demasiado normativo das religiões tradicionais, sendo que espiritual, neste âmbito, parece significar: algo capaz de tornar a vida mais interessante e agradável num sentido simples e táctil, e também mágico.
Lido de passagem numa revista New Age e traduzido, salvo erro tipográfico, palavra por palavra: “Se se sente bem com a presença de Deus na sua vida, então recorra e utilize-o nos momentos mais difíceis. Se quiser abdicar do divino na sua vida, tem também a liberdade para o fazer. O importante é que se sinta feliz e com equilíbrio emocional”.
Fantástica a candura com que se trata Deus como o modo vibratório do escalda-pés, que se pode ligar ou não, a despeito da deferência da letra maiúscula. Esse léxico pragmático, medicinal, pedagógico, não é usado de forma críptica ou subterrânea, não tenta disfarçar-se de algo mais elevado ou puro, efeito literário que creio que um teólogo acharia estritamente necessário conseguir. É um palavreado franco, assumido e descarado, e só podemos simpatizar com isso, a menos que desconfiemos que quem o escreve não o faz de propósito.
Não parece haver, no New Age, desacordos profundos relativamente ao que é verdade ou ao que não é. Apetece dizer que talvez seja pela impossibilidade de verificação. Mas por outro lado essa impossibilidade nunca impediu guerras e massacres entre populações adeptas de diferentes religiões organizadas. Nesse sentido, é manifesto que modestos instrutores, certificados ou não, de recantos meditativos de bairro, triunfaram onde egrégios teólogos de diferentes eras e geografias, em solenes concílios, fracassaram: lograram instituir uma crença que é aceite com a simplicidade com que é oferecida, sem contendas. O New Age é a para-farmácia preventiva da espiritualidade, evitando as contra-indicações e efeitos secundários do princípio activo mais grave da religião. Os evangelhos do New Age não têm pretensões de corresponderem à verdade verdadeira, talvez porque entraram em cena longe do tempo da crença na possibilidade dessa verdade, e porque isentos de história. Correspondem antes a uma verdade sortida, afirmada ao sabor da necessidade, com o propósito de escudar as pessoas do medo da morte e dos medos da vida, desde o vazio ao excessivo peso existencial.
No New Age, Deus pode não ser obrigatório, mas deus sabe que o optimismo é. Pelo que entendi, isso é normativo: há que se ser positivo. A energia negativa está por todo o lado, e combate-se virando-se-lhe as costas. As práticas New Age são executadas sob o auspício curativo de palavras e expressões rosadas, sacrários pendurados no nada: luz, amor, gratidão, etc. Parece tudo um pouco fastidioso e asséptico mas inócuo, até depararmos com uma citação de um famoso guru: “Se morrer de cancro, a culpa é sua”. Poder-se-ia desculpá-lo se achássemos que admoestava algum relutante da quimioterapia. Mas sabemos que se refere a algo a montante: Quem não faz uma alimentação – física, mental, psicológica, espiritual - à base do que é positivo, não venha queixar-se se lhe aparecer no corpo algo negativo como, digamos, uma doença mortal. Pode fazer-se uma pequena ponte entre isto e o pensamento cristão, no sentido de que invoca a culpa, pedra basilar dessa instituição, e o pecado original transmutado na determinação genética, o mais plausível culpado do surgimento do cancro. No fundo, uma frase mais sádica do que uma matilha de freiras à reguada.
Parece-me sobretudo de um pessimismo colossal a ideia de que todo o pensamento deva ser orientado no sentido do positivo, sob pena de nos desabar o Mal em cima. Como se houvesse a certeza de que a integridade epistémica na avaliação do mundo só nos poderia levar a terríveis amargos de boca, que a curiosidade intelectual, o pensamento, a vontade de conhecer o mundo tal como ele é - ou seja, numa análise não filtrada pelas lentes rosa do optimismo -, constituirá um tumor mais ou menos literal que acabará por nos matar. O que levaria directamente à premissa: O mundo é tão terrível, temos tanto horror a ele e tanta razão para o ter, que nos resta fantasiar com toda a determinação do nosso ser que assim não é.
Talvez espiritualidade seja uma designação perfeitamente legítima para o inominável, e nem toda a gente que a busca precise ser intelectualmente imatura. Edgar Morin fala de uma zona média que é o mundo que percepcionamos, no qual nos movemos e onde estão as regras que podemos apreender e categorizar. Chama a atenção para o minúsculo que esse espaço é em comparação com as camadas superior e inferior a ele, áreas a perder de vista em dois infinitos pelo menos: o cosmos gigantesco com os seus buracos negros e brancos, as suas curvaturas incompreensíveis, os mistérios absolutos da sua origem, do seu futuro, do seu propósito; o quantum subatómico minúsculo, onde tudo o que julgamos saber vai às couves, e no qual se testou com sucesso que uma mudança sofrida por uma partícula no futuro pode promover uma alteração numa partícula do passado. Não precisamos compreender realmente o que isto significa para constatarmos que a melhor designação para isto, tal como o seria à luz dos primeiros fogos ateados pelo homem, é de facto magia. Talvez nos possamos simplesmente deter e maravilhar no limiar desta realidade fabulosa. Creio que qualquer ilusionismo que tentemos inventar às próprias mãos terá de sair, por comparação, de uma triste e idiota palidez.
Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Escreveu durante 20 anos antes de chegar a publicar. Desde então, Elogio da Infertilidade obteve o Prémio Ferreira de Castro 2017; Quartos de Final venceu o concurso Coleção Vertentes da Universidade Federal de Goiás (Brasil), em 2013, e é agora finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa; o seu conto Canção de Ninar (Escritório Editora, 2015) ganhou o concurso literário incluído no Motel X, em 2015. Recusa o «aborto ortográfico». Para si, a escrita é um ato de catarse e rebelião. Podes ler a sua obra literária na página 108.
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