Para assinalar o Dia Mundial da Dança (29 de abril), o Gerador foi procurar saber o “estado da arte” deste ofício em Portugal, junto de uma das companhias independentes que mais tem feito pelo reconhecimento dos profissionais portugueses de dança, dentro e fora do país: a Companhia de Dança de Almada. Qual o papel da dança na criação da identidade portuguesa ao longo da história? Qual a realidade atual dos profissionais deste setor cultural? Como é visto, lá fora, tudo o que se faz na dança em Portugal? E o público nacional valoriza esta arte ou será urgente mais educação neste sentido?
“O corpo é um dos símbolos através dos quais as sociedades representam os seus fantasmas. […] É nesse sentido que uma análise das representações do corpo na dança torna suscetível uma perspetiva de entendimento do inconsciente das estruturas sociais e dos não ditos dos sistemas culturais.” A citação é da obra Vozes do Povo: a folclorização em Portugal, de Swalva Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco, que se propõe a refletir sobre a evolução da identidade cultural portuguesa, criada através do movimento do corpo coletivo. Da dança enquanto objeto de elaboração social.
A história mostra que a dança pode ser arma de protesto ou de propaganda política. Pode ser manifesto cultural e psicossocial de um determinado grupo de pessoas e, ao mesmo tempo, uma linguagem universal através da qual civilizações díspares se comunicam. É a arte da expressão de um corpo individual, mas com a capacidade de criar, também, uma corporeidade comunitária. A dança liberta e une.
Foi para celebrar esta capacidade de expressar e esbater barreiras políticas, culturais e étnicas que o Conselho Internacional de Dança (CID), entidade criada sob a égide da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), instituiu, em 1982, o Dia Mundial da Dança. A data — 29 de abril — foi escolhida em memória do nascimento do coreógrafo francês Jean-Georges Noverre, um dos pioneiros da dança moderna.
Para assinalar a efeméride, o Gerador quis tentar perceber qual o “estado da arte” da dança em Portugal. Como se funde a dança com a história do nosso país? Quais os principais marcos? Qual a realidade atual dos profissionais deste setor cultural? Como se entende a dança praticada por cá num contexto internacional?
Para responder a estas e outras questões, encontrámo-nos com Ana Macara, diretora artística da Companhia de Dança de Almada (CaDA), nas instalações desta, que foi uma das primeiras companhias independentes a surgir no nosso país, concretamente em 1990, pela mão de Maria Franco. Foi também no seio desta companhia que nasceu, em 1992, a Quinzena de Dança de Almada — ainda hoje um dos poucos festivais de dança contemporânea a realizar-se em Portugal. Este festival tem trazido, todos os anos, durante as últimas três décadas, ininterruptamente, bailarinos e coreógrafos de todo o mundo à margem sul do rio Tejo, projetando para outras latitudes aquilo que de melhor se faz nos palcos portugueses.
Atualmente, além dos cerca de 25 profissionais a quem serve de casa, a CaDA é um espaço que ensina dança a cerca de 200 crianças e jovens, diariamente. Aqui ocorrem também aulas para seniores e desenvolvem-se outros projetos com a comunidade local, assumindo a missão de aguçar a curiosidade e a sensibilidade do público português para um espetáculo de dança. A CaDA serviu, aliás, de piloto para o projeto do Ministério da Educação que visa inserir a dança no programa escolar para o ensino básico. Um projeto que, entretanto, já se alargou a dezenas de escolas em todo o país, permitindo elaborar um corpo dançante e cultural cada vez mais forte e abrangente em Portugal.
“Dança é a única arte na qual nós mesmos somos o material de que ela é feita.”
Ted Shawn
Gerador (G.) — Apesar de ser uma forma de expressão universal, a dança pode ser também uma arma para a educação e expressão política, cultural e étnica? Historicamente, a dança não é tudo isto? Uma forma de expressão de uma identidade?
Ana Macara (A. M.) — A dança é universal no sentido de todos podermos apreciar a dança, independentemente das influências culturais. Mas é muito importante conhecermos as diferentes linguagens da dança. Eu não aprecio um grupo de hip hop da mesma maneira que aprecio um grupo de dança tailandesa. Há códigos diferentes. Há múltiplos códigos subjacentes a cada tipo de dança que, se não os conhecermos, não entendemos o que a dança nos está a transmitir. Isto passa-se em relação à dança clássica, à dança contemporânea e a todos os outros estilos.
A dança contemporânea, sobretudo, não é naturalmente entendida por toda a gente: há padrões estéticos, conceitos, uma linguagem própria. Por isso é que, na Companhia de Dança de Almada, consideramos tão importante realizar um festival de dança contemporânea. Para que as pessoas se habituem vendo os vários tipos de dança contemporânea, vendo como é que a dança contemporânea pode transmitir diferentes linguagens, diferentes mensagens políticas e emocionais e chegar às pessoas por diferentes vias, que não são as mesmas que encontramos em outros tipos de dança.
G. — Muitos países têm um estilo de dança característico que expõe uma identidade, uma estética muito própria. Vemos, por exemplo, na Espanha, o flamengo. Portugal conseguiu formar uma identidade própria na dança?
A. M. — Portugal atrasou-se muito em termos de dança. Durante o século XX, enquanto a dança se desenvolvia muito noutros pontos da Europa, em Portugal, só no final do século é que, com o Ballet Gulbenkian, se começou a fazer um trabalho realmente interessante, datado para a época. Antes disso, houve a Verde Gaio que, mesmo estando muito preso à ideia de tradição e das danças folclóricas, podia ter ido muito mais além. Até porque tinha criadores, coreógrafos, que poderiam ter feito mais, se o país não tivesse tão fechado na ideia de tradição, na preservação das tradições.
G. — O Ballet Gulbenkian e a Verde Gaio são dois dos principais marcos da história da dança em Portugal.
A. M. — Fundamentais.
G. — Começando pelo mais antigo: o que representou a Verde Gaio?
A. M. — A Verde Gaio foi uma companhia de dança modernista, com alguns criadores que desempenharam um trabalho interessante, que conseguiram até contornar, de certa forma, a visão do Estado Novo para este projeto: a de fazer uma companhia sustentada apenas nas tradições portuguesas, nos fatos tradicionais, na velha guarda portuguesa, nos valores tradicionalistas da fé e de tudo o que é “não-progressista”, digamos. Mas, de facto, havia lá alguns coreógrafos que conseguiram dar a volta a esta ideia e fazer algumas coisas modernistas interessantes.
G. — Mesmo apesar de ter influência do Estado Novo?
A. M. — Sim, apesar de ter muita influência do Estado Novo. A Verde Gaio foi criada [em 1940] por António Ferro e era uma bandeira salazarista. Foi perdendo importância ao longo dos tempos, mas lembro-me de que, mesmo depois do 25 de Abril, levou algum tempo a fechar definitivamente. Embora estivesse algum tempo sem criar nada, apenas com alguns bailarinos a trabalhar.
G. — Deixou influências até hoje na dança em Portugal?
A. M. — É difícil dizer. Porque, depois, o Ballet Gulbenkian veio cortar completamente com todo esse trabalho. Este já tinha outro tipo de tradições mais fundamentadas na dança ocidental, em geral. Depois do 25 de Abril, surgiu a Companhia Nacional de Bailado, que ainda se mantém e que tem passado por muitas fases — umas mais voltadas para o bailado clássico, outras para o contemporâneo.
G. — Podemos dizer que, na dança em Portugal, há um antes e um depois do Ballet Gulbenkian?
A. M. — Sim. O Ballet Gulbenkian começou nos anos 60 e foi muito importante porque trouxe alguns coreógrafos norte-americanos que, na altura, eram dos mais importantes na cena internacional. Foi muito importante até mesmo depois do 25 de Abril. A Companhia Nacional de Bailado, de dança clássica, surgiu já depois do 25 de Abril e foi também muito importante. Nunca houve, em Portugal, uma tradição de companhias clássicas, como há noutros países. Quando vamos a outros países, vemos realmente esta discrepância. Ainda há pouco tempo estive na Bulgária, e [lá] a tradição de ir com a família ver os espetáculos de dança clássica é muito forte. Quem diz Bulgária, diz Itália, entre outros. Há um hábito de ir ver dança clássica ou contemporânea, com a família, aos fins de semana ou em épocas festivas como no Natal, como nunca houve cá.
G. — Mas têm melhorado esses hábitos por cá?
A. M. — Sim. Nota-se uma diferença muito grande. Aliás, um outro marco importante na história da dança em Portugal foi o crescimento da dança contemporânea nos anos 90, sobretudo. Foram anos de crescimento exponencial.
G. — E a que se ficou a dever esse crescimento?
A. M. — Aconteceu porque se começou a apostar mais na formação, a ir para fora do país e a estudar outras linguagens. Quando estudei dança, nos anos 60, havia poucas escolas — e só de dança clássica — enquanto no resto da Europa e nos Estados Unidos já se via uma grande evolução da dança moderna e da dança contemporânea. Ou seja, o cenário estava a evoluir lá fora e aqui estava estagnado. Com o 25 de Abril de 1974, as pessoas começaram a sair do país, a ter mais acesso ao conhecimento e à formação. Começaram a aparecer cada vez mais talentos e a serem criadas condições para surgir muito trabalho independente. De facto, o que de mais relevante aconteceu nos anos 90 foi todo esse trabalho independente. Começou a haver um núcleo de pessoas a fazer dança contemporânea que até então não existia.
G. — Foi, aliás, em 1990 que surgiu a Companhia de Dança de Almada.
A. M. — E foi das poucas companhias independentes que surgiu nessa altura. Até então, havia algumas, mas muito rudimentares, digamos. Depois da Companhia de Dança de Almada começaram a surgir até algumas companhias de autor, como a da Clara Andermatt e a do Paulo Ribeiro. Os anos 90 foram muito importantes nesse sentido. Nessa altura, Portugal deu um salto muito grande e posicionou-se, até, muito mais à frente, comparando com Espanha, por exemplo, em termos de dança contemporânea. Como na Espanha havia uma tradição muito forte de dança clássica espanhola e de danças tradicionais, a dança contemporânea levou muito mais tempo a desenvolver-se no país vizinho. Quando começámos aqui com o nosso festival [Quinzena de Dança de Almada] em 1992, as propostas que vinham de Espanha eram ainda muito incipientes. Enquanto, por cá, já estávamos com criações muito fortes. Agora, as coisas mudaram um pouco. Temos assistido a um crescimento muito importante da dança contemporânea em Espanha.
G. — A dança e o teatro andaram de mãos dadas durante esta trajetória? Puxaram um pelo outro?
A. M. — Nem sempre. São mundos bastante distintos. A dança vive muito da disciplina. O bailarino tem de ser disciplinado e trabalhar todos os dias. Embora isto seja regra mais para a dança clássica do que para a contemporânea — aí o cenário muda um pouco. Mas há sempre uma necessidade de disciplina que no teatro não existe. No teatro há até uma tradição de rebeldia, procura o novo, o diferente. Na dança contemporânea, isto também acontece, mas não dispensa uma certa disciplina para manter o corpo a funcionar como deve de ser. Como um músico que tem de praticar todos os dias para dominar o seu instrumento.
Dançarinos são instrumentos, como um piano que o coreógrafo toca.”
Balanchine
G. — Maria Franco disse, numa entrevista ao Gerador, que a Nova Dança teve um papel fundamental para dar espaço a novos criadores, mas surgiu uma tendência que é mais performativa e não tanto ligada à dança. O que distingue uma performance de uma dança?
A. M. — A Nova Dança remete para o surgimento da dança contemporânea. Realmente, hoje há já tantos estilos dentro da dança contemporânea que é difícil acompanhar, não só para quem está de fora, mas também para quem está dentro deste mundo. Continua a haver uma tendência focada no domínio da técnica corporal, que é tradicionalmente o que chamamos dança. Mas também há uma outra tendência, mais performativa, que procura fazer com que o corpo fale, independentemente da técnica. Por isso é que temos hoje coreógrafos que preferem não bailarinos para os seus espetáculos. Porque os bailarinos têm já um movimento estereotipado. No entanto, estes continuam a ser parte do mundo da dança, porque usam o corpo para exprimir certos conceitos. Esta é uma tendência que se aproxima muito mais da performance. Há certas áreas das artes visuais, por exemplo, em que o artista usa o corpo para fazer parte da obra. Nesse aspeto, há zonas de interseção, em que a técnica não é predominante. Não podemos dizer que uma tendência é melhor do que a outra. Há grandes coreógrafos nos dois lados.
G. — Essa interseção abre mais portas para a criação, talvez.
A. M. — Sim. Há até festivais muito interessantes que se focam nessas zonas de interseção. Juntam a dança com as artes visuais, o digital e a performance. Diferentes criadores procuram diferentes formas de se exprimir esteticamente.
G. — A Quinzena de Dança de Almada promove um pouco isso também, não é?
A. M. — Em Portugal, há vários festivais que se focam num trabalho mais performativo, mais voltado para o conceito do que para a técnica. Nós, na Quinzena de Almada, achamos que faz falta — como em todos os países — uma área onde a experiência do corpo é fundamental. Portanto, acima de tudo, damos muito valor à técnica. Mesmo na Companhia: temos bailarinos que são bons atores e bons a transmitir os conceitos estéticos que os coreógrafos pedem, mas são, sobretudo, muito fortes tecnicamente. Porque consideramos importante não perder um património de técnica de dança que se foi desenvolvendo ao longo das décadas.
G. — A Companhia de Dança de Almada cria quantos espetáculos por ano?
A. M. — Temos, por norma, duas criações por ano: uma, com um coreógrafo mais emergente e, outra, com um coreógrafo mais reconhecido. Além disso, criamos também um espetáculo infantil, mas não acontece todos os anos. Por vezes criamos também um espetáculo de videodança, que nos permite chegar a lugares que, de outra forma, não conseguiríamos. Depois, há sempre um trabalho de pesquisa e desenvolvimento técnico que vamos construindo paralelamente.
G. — A Companhia vai apresentar um espetáculo especial para assinalar o Dia da Dança. Pode-nos falar um pouco sobre este espetáculo?
A. M. — Vamos apresentar o Quiet Moment, do Bruno Duarte. Este é um trabalho particularmente interessante, que se baseia no conceito do filme negro. Neste caso, faz uma reinterpretação do filme Psycho, de Hitchcock. Toda a coreografia é uma releitura deste filme icónico, de todos os estados emocionais e factuais que se vão passando ao longo do filme. É uma peça muito interessante, a ser apresentada em Castelo Branco. É uma forma mais acessível, digamos, de levar a dança ao grande público.
“Todos os temas são apropriados para um balé desde que ele possa ser expressado e transmitido através do movimento.”
Noverre
G. — A Companhia de Dança de Almada foi criada para ajudar a preencher uma lacuna detetada, relativa a espaços alternativos para os bailarinos em Portugal. Cerca de 30 anos volvidos, o sentimento mantém-se? Ainda há falta de espaços alternativos para os bailarinos em Portugal?
A. M. — Acho que se nota cada vez mais essa falta. Há mais companhias — não muitas mais. Por outro lado, há também muito mais gente formada. E não temos assim tanto público habituado a ver espetáculos de dança contemporânea. Por isso, tem de haver mais companhias para incentivar. Não chega termos apenas uma Companhia Nacional de Bailado.
G. — É possível, hoje, em Portugal, desenvolver-se uma carreira enquanto bailarino profissional apenas?
A. M. — Não é fácil. Quase todos os bailarinos da Companhia de Dança de Almada recorrem também a dar aulas ou a outros trabalhos. Aqui, nesta companhia, a direção considera fundamental manter uma equipa fixa, que se conheça muito bem e que se desenvolva diariamente. Cada bailarino tem a sua própria identidade, mas privilegiamos a criação de uma identidade comum na companhia. Isso é política para a direção desta companhia: criar uma técnica, através do convívio diário, uma unidade de grupo. Mas isto não acontece em muitas outras companhias, que vão contratando bailarinos temporariamente, mediante as suas necessidades.
Testemunho de uma bailarina:
“Tenho 30 anos e ainda trabalho e vivo da dança. Vivi e trabalhei, entre 2013 e 2020, em Lisboa. Atualmente, vivo e trabalho na Madeira, onde a realidade muda no que diz respeito a oportunidades nas artes do espetáculo. Mas tenho colegas já na casa dos 40 anos que ainda dançam em companhias de dança e em teatros. As maiores inquietudes da nossa classe profissional passam por não saber até quando podes dançar e se vais ter trabalho. Esta é uma inquietude geral em Portugal, mas, na arte da dança, os bailarinos têm muitas vezes essas questões porque o trabalho é quase sempre incerto e as condições e remunerações muitas vezes são ingratas. Mas quem gosta, tudo consegue. Mesmo que não consiga dançar em palcos, um bailarino pode sempre partilhar a arte da dança a ensinar a crianças, jovens e até mesmo adultos. Eu, por exemplo, estou numa fase da vida que ganho mais a ensinar dança do que quando dançava em teatros.
Em suma, a realidade geral de um bailarino profissional passa por: (1) poucas oportunidades de trabalho, em Portugal, devido a diversas razões, entre elas: a idade, o peso, a altura ou a técnica; (2) poucas oportunidades de contrato — quase sempre as propostas de trabalho são a recibos verdes, e regime de freelancer; (3) dificuldade na estabilização de carreira para bailarinos que não pertençam a companhias de dança ou bailado profissionais; (4) necessidade constante de provar o seu valor por meio de castings e audições, por exemplo; e (5) necessidade de enveredar pelo ensino com aulas de dança para crianças e adultos, em alternativa à falta de trabalho em artes de espetáculo.”
Carla Fernandes é natural da Madeira e iniciou a sua carreira de bailarina em 2009. Estagiou e fez tournée pela Rússia, antes de se iniciar como bailarina e professora de dança e psicomotricidade para crianças. Na sua carreira de bailarina, ingressou nas Produções Filipe La Féria, através das quais participou em espetáculos como O musical da minha vida (2016), A volta ao mundo em 80 minutos (2017), Rapunzel (2018) e A rainha da neve (2019).
G. — Como se compara o panorama nacional do ensino de dança com outros países?
A. M. — Nos últimos anos, o ensino da dança tem crescido muito ao abrigo do decreto-lei que estabelece o ensino articulado. Penso que já há umas 40 escolas no país com ensino articulado. Neste caso, a Companhia de Dança de Almada trabalha há já alguns anos com escolas do ensino básico. Há um programa estabelecido, em que certas disciplinas são dispensadas para que os alunos, a partir do quinto ano, possam estar uma tarde inteira aqui connosco a ter aulas de dança. Desta forma, a oportunidade de ter aulas de danças chega a muitas mais crianças, e não apenas às crianças cujos pais podem pagar a um professor para ter aulas particulares.
É fundamental a dança chegar a todos, independentemente do seu estatuto social. Vemos, por exemplo, no Brasil, a quantidade de bailarinos que vêm de bairros sociais que, se não fosse através de programas deste género, não conseguiriam chegar onde chegam. Por cá, também está a começar esta mudança.
G. — A dança é importante para o desenvolvimento cognitivo de uma criança?
A. M. — A dança, por norma, é uma atividade que desperta o interesse de muitas crianças. E terem a oportunidade de praticar algo de que gostam é, desde logo, extremamente importante. Depois, é uma atividade que desenvolve o ritmo, fortalece a fisionomia, a motricidade geral e fina, a memória, a expressividade em geral. É uma atividade muito rica.
G. — À dança, pelo menos na dança clássica, associa-se comummente uma certa rigidez e exigência por aquilo que é o corpo ideal para a/o bailarina/o. Tem de ser magro, esguio. Sabemos que esta exigência leva, muitas vezes, a transtornos alimentares e psicológicos. Isto não acontece apenas na dança. Nos últimos tempos, cada vez mais ginastas, por exemplo, e principalmente mulheres, têm-se expressado sobre estas questões. No mundo da dança, nota alguma evolução na sensibilização para estas questões?
A. M. — Sim, há muita preocupação nesse sentido. Há 20 anos, os problemas de imagem corporal dos bailarinos eram muito mais graves do que na população em geral. Hoje, isso já não se nota tanto, porque há, na população em geral, uma maior preocupação com o corpo, com o aspeto. As bailarinas, de um modo geral, quando vão para a dança é porque também já têm um corpo com predisposição para a dança. Com o desenvolvimento da dança contemporânea, abriu-se mais espaços para diferentes morfologias corporais. Portanto, acho que houve uma mudança para melhor. Um professor de dança, hoje em dia, de um modo geral, tem mais preocupação com as regras alimentares. No meu tempo, um professor de dança clássica dizia “não comas”. Hoje há mais conhecimento e mais preocupação com a nutrição e a alimentação saudável.
“Ninguém se importa se você não pode dançar bem. Grandes bailarinos não são grandes por causa de sua técnica, mas por causa de sua paixão.”
Martha Graham
G. — Como vê o apoio do Estado ao setor da cultura e da dança, em específico, ao longo destas últimas décadas?
A. M. — É difícil responder. Sabemos que o apoio do Estado à cultura é muito deficiente. E é preciso haver mais apoios em diferentes áreas. Não queremos ser apenas nós apoiados. Precisamos que haja muitas companhias apoiadas, para que os nossos alunos possam ver outras criações e para que o público em geral ganhe hábitos de ir ver espetáculos. Porque isso, sim, vai permitir mudar a sociedade. É preciso educar o público. Esse deveria ser o papel do Ministério da Cultura.
G. — Está expectante de que, com o novo Orçamento de Estado, o investimento nesta área possa melhorar?
A. M. — O investimento não vai melhorar muito. Pode haver políticas melhoradas. Vamos ver.
G. — Maria Franco disse, em 2019, também em entrevista ao Gerador, que em todos os mandatos de Governo que se iniciam têm de prestar provas. No entanto, considerava que o cenário tinha mudado um pouco desde o primeiro Governo de António Costa, passando a ser “mais valorizado tudo o que as companhias fazem, não só a nível da criação, mas também de formação, desenvolvimento de públicos e pesquisa”. Concorda?
A. M. — Isto tem que ver mais com as equipas do Governo, que vão variando e vai variando, assim, aquilo a que se dá mais atenção. Eu penso que falta um plano generalizado de apoio à cultura. Em todas as frentes da cultura. Para que as pessoas ganhem mais hábitos de assistir a espetáculos.
G. — É preciso educar o público?
A. M. — Sem dúvida. Quando comparamos os hábitos de assistir a espetáculos do público português com o francês ou espanhol, há um fosso assustador. A dança contemporânea, por norma, tem muito menos público do que um concerto de música pop, por exemplo. Mas, em Portugal, o público reduz-se ainda mais. Combater isso passa pela educação, por um plano que tem de passar pelas escolas, também. Não chega apenas dar dinheiro às companhias.
G. — A Quinzena De Dança de Almada tem contribuído para esse mesmo efeito?
A. M. — Queremos acreditar que sim. Procuramos sempre ter espetáculos mais acessíveis para o grande público.
G. — Como vê a evolução da Quinzena de Dança de Almada desde a primeira edição há 30 anos?
A. M. — Hoje, este festival já dura mais do que uma quinzena. O ano passado durou um mês. Este ano, vamos ver se não passa das três semanas. A Quinzena, quando arrancou, há 30 anos, não existia nenhum outro festival de dança em Portugal. Começou o Danças da Cidade no mesmo ano. Nessa altura, a Quinzena era um festival muito aberto a diferentes tipos de dança. Tivemos inclusivamente danças de salão, entre outros estilos. Depois, como começaram a surgir outros festivais, decidimos posicionar-nos na criação contemporânea, que é o nosso foco. Em termos de formação, a Companhia tem aulas de dança clássica regulares. No entanto, em termos de criação, está focada na dança contemporânea.
Além de tentarmos tornar a dança contemporânea mais acessível para o grande público, temos a Plataforma Coreográfica Internacional, que é dedicada ao público profissional da dança. Este é um espaço fabuloso para o qual trazemos sempre mais de 20 coreógrafos de vários países. É um espaço de encontro onde as pessoas trocam ideias e que permite realizar muitos intercâmbios de bailarinos e coreógrafos. Tem atraído o interesse de cada vez mais profissionais. Para este ano, tivemos já quase 500 propostas de pessoas interessadas em vir cá. É desagradável termos de dizer que não, mas realmente não temos como receber tanta gente.
A Plataforma Coreográfica Internacional acaba por ser um conceito único no nosso país, que permite um encontro entre profissionais de todo o mundo e um intercâmbio de conhecimento muito importante para o desenvolvimento da dança. Espanha, de resto, é o país mais representado, a seguir a Portugal, nos encontros da Plataforma. Desde o início que temos sempre a participação de muitos coreógrafos espanhóis. Temos, inclusivamente, apoio da Embaixada de Espanha. Já tivemos até, numa edição do festival, um espetáculo na Plataforma dedicado essencialmente à dança espanhola, com o apoio do [festival bienal de cultura espanhola em Portugal] Mostra Espanha. Esta tem sido uma boa parceria, já que, sem este apoio, seria difícil trazermos ao festival tantas companhias como as que trazemos. Porque cada vez temos mais companhias a participar no festival, mas o nosso orçamento continua muito limitado.
G. — Além de permitir trazer criações internacionais a Portugal, a Quinzena de Dança de Almada é também uma forma de levar o que de melhor se faz em Portugal a outros cantos do mundo?
A. M. — Sem dúvida. Temos parcerias internacionais com vários países, como a Bélgica, Israel, Bulgária, Alemanha, entre outros, o que faz com que o nosso festival tenha uma certa visibilidade internacional e permite levar criações a outros festivais, lá fora.
G. — Para a próxima edição da Quinzena, a trigésima, que será em outubro, já nos podem revelar alguma novidade?
A. M. — Ainda é cedo, mas vamos ter cá um coreógrafo que queríamos trazer ao festival há já muito tempo: o britânico James Wilton, que tem sobressaído no meio da dança e será uma estreia em Portugal. Estamos muito entusiasmados. Vamos trazer também um coreógrafo português que está radicado na Alemanha — onde tem uma carreira importante — há muitos anos: o Tiago Manquinho. O resto ainda não podemos revelar.
“E que seja perdido o único dia em que não se dançou.”
Friedrich Nietzsche