Este texto não é sobre a Joana, o Ricardo ou o Rui, mas podia ser, porque os limites do humor podem não existir, mas tal não nos desresponsabiliza das suas consequências. Entenda-se, numa sociedade livre não há temas tabu, mas tal não significa que o ponto de vista e a escolha do alvo da piada não sejam criticáveis.
O lavar de mãos que existe sobre a teoria de que as palavras não têm poder, que são meras palavras vazias e que quem as acusa de ofensivas é que deve resolver-se é uma falácia. Uma falácia espelho de uma posição de privilégio e de falta de empatia, colocando assim o ónus na vítima. Quem cresceu com humilhações, insultos e violências diárias saberá melhor que ninguém o peso e o poder que as palavras têm. Não será certamente por acaso que a maioria de jovens LGBTI+ em Portugal ainda são vítimas preferenciais de cyberbullying e de bullying em contexto escolar, no espaço público, mas também familiar. Não trago para aqui sequer o discurso de ódio, porque o mesmo é prova de que as palavras importam e podem ser usadas como arma e violência. As minorias e as mulheres que o digam.
Reforço, não está em causa a liberdade de expressão, nem qualquer ato de censura. A crítica a uma tomada de posição ou a um ponto de vista humorístico é precisamente exercer esse direito. Não há tentativa de cancelamento, não é wokismo, é simplesmente uma opinião. Uma opinião que, com alguma sorte, será devidamente sustentada e basear-se-á em princípios éticos e humanistas. Uma opinião que não se baseia naquilo que a pessoa em causa tem de fazer, mas naquilo que podia fazer para não fragilizar vidas já de si fragilizadas.
E, por vezes, o melhor que pode fazer é fazer nada. Se a empatia para uma situação tão difícil como o desaparecimento de uma pessoa trans por três dias não é suficiente para a sua contenção, o que será? Se um insulto homofóbico é usado numa piada para atacar a extrema-direita, não legitimará também o seu uso como arma de ataque a qualquer pessoa? Afinal de contas, “as pessoas metem-se a jeito” e “um nazi larilas é mais ofensivo que um nazi não-larilas“.
Há obviamente espaço para erros, afinal de contas não será nada fácil a manutenção de um espaço diário na rádio, ou semanal na televisão ou mensal em jornais (o tal alegado cancelamento), mas é a perpetuação dos mesmos que mais aflige. E aflige, acima de tudo, a quem com eles sofre na pele. E não estaremos a falar quase nunca aqui de humoristas. E muito menos de quem continua a queixar-se em tooodas as suas plataformas na comunicação social.
Mas repare-se, este é longe de ser um tópico simples. Importa referir que há aqui também uma questão de poder. Porque é diferente expor uma pessoa anónima e fazê-lo a uma figura pública, política ou em posição de poder. Questionar o status quo é bem diferente de colocar em causa uma pessoa anónima já discriminada, perseguida, gozada e violentada no seu quotidiano. A tal diferença entre punching up e punching down, é que para a segunda já temos uma vida inteira disso. E há a meu ver uma agravante quando em causa estão crianças e jovens e as suas reivindicações ambientais. São situações especialmente exigentes no que toca à ética da sua exploração e ridicularização num dos programas de humor mais populares do país.
Não há dúvidas de que o humor tem sido um dos maiores trunfos das democracias livres, combatendo com e por elas. Causando incómodo, denunciando hipocrisias, usando precisamente o poder da palavra com mestria para combater o status quo e as injustiças sociais. Quando humoristas escrevem os guiões no conforto da sua casa ou do seu estúdio, importa que tenham consciência das consequências que certas palavras poderão ter na vida das pessoas que abordam. Escolherem abordar certo tema – e reitero que qualquer tema é abordável – que perspetiva lhe querem dar? Quem estão a proteger? Que consequência poderá ter aquela piada?
São questões que importam ser feitas por todas as pessoas e que, importa ter essa consciência, não teremos as respostas para todas elas connosco. Mas por isso mesmo é fulcral conhecer as vivências e realidades além das nossas. Aproximar-nos, escutarmos. Para que, no final, as nossas punch lines não perpetuem punching bags.
*Este artigo foi escrito por Pedro Carreira, ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e fundador da esQrever, no âmbito da parceria com esta última entidade.