A semana passada, entre intermináveis viagens de avião e comboio para passar o Natal em família, consegui parar um dia em Lisboa para assistir a uma das últimas apresentações da Alice no País das Maravilhas, da Companhia Nacional de Bailado. No foyer do Teatro Camões, quanto mais se aproximava a hora do espetáculo, maiores eram as filas que se desenhavam para serem mostrados os certificados de vacinação ou de teste negativo. O processo era cada vez mais rápido, fluído, e o auditório ia-se compondo. Não tive qualquer dúvida: a casa estava cheia. Este foi o quarto espetáculo de dança ao vivo que assisto desde março de 2020 e por isso é inevitável não surgir a preocupação: e se as portas do teatro se fecham novamente, agora que estamos a recomeçar neste novo normal?
Na viagem de regresso a casa, li um artigo onde vários especialistas preveem que a pandemia pode durar mais tempo do que o esperado, podendo permanecer como parte do nosso dia-a-dia durante os próximos cinco anos. Enquanto as estatísticas e previsões iam surgindo à medida que fazia scroll, pensava que cinco anos soam muito mais do que meia década - sobretudo se pensarmos que tantos de nós ainda estão a encontrar o seu caminho entre restrições, incerteza, medo e muita fadiga. Como iremos conseguir aguentar mais tempo? Penso, inquieta. Até que aquela sala cheia do Teatro Camões me vem novamente à memória, os bailarinos em palco e os aplausos do público dão-me uma sensação de esperança - talvez seja a altura de deixarmos de esperar que a pandemia desapareça, mas pode ser a altura certa para a cultura aceitar um novo normal e todas as mudanças que isso nos traz, tanto para artistas como para o público.
Já que estes últimos dois anos irão marcar profundamente a próxima década, é importante olharmos para o agora de forma a criarmos novas respostas no setor da cultura. Como? Em primeiro lugar, aceitando que nada será igual. No recente artigo da Forbes “Uma Nova Era nos Eventos ao Vivo” (originalmente, A New Era For Live Events: Bringing Brand Experiences To A Post-Covid World), o tempo presente é, em vez de negativo, olhado com entusiasmo, já que os autores acreditam que estamos a entrar nos loucos anos vinte deste século, onde as pessoas têm novos valores que inspiram inovadoras criações artísticas.
Imaginar um novo futuro diferente para a dança - e para a cultura - parece desafiante, sobretudo se recordamos que a dança se faz de fisicalidade e de contacto. Se pensarmos além do que se passa em palco, há outros desafios adicionais para os espetáculos ao vivo: a falta de confiança em comprar bilhetes antecipadamente, os cancelamentos e alterações de última hora e a constante avaliação das medidas sanitárias. Encontrar um caminho firme neste ambiente de caos pode ser difícil. Mas talvez no horizonte consigamos vislumbrar a melhor direção: acompanhar a nossa evolução enquanto sociedade, e trazer estes novos valores para a criação artística e relação com espectadores.
Mas, afinal, quais são esses valores? Embora não saibamos ainda o que o resto da década nos poderá trazer, a pandemia veio alterar a forma como nos conectamos com os outros e quais as nossas prioridades, não só individuais mas também em sociedade. Nestes anos vinte, que tipo de cultura queremos experienciar? A resposta pode passar pela vontade de regressar ao contacto físico e não limitar as iniciativas ao digital. O artigo da Forbes destaca a necessidade de criar novos espaços onde as pessoas se encontram e partilham os seus interesses mútuos, o que significa que o público procura uma maior diversidade de oferta e de possibilidades de vivenciar algo. Se a experiência ao vivo deve ser mais enriquecedora, uma maior diversidade na programação de dança deve ser considerada necessária e urgente - Fazer chegar a dança a novos públicos fora dos grandes centros urbanos é um primeiro passo impulsionador de novas experiências ao vivo. Conhecer as comunidades que apoiam a criação artística e dar-lhe um maior leque de oferta é igualmente necessário, reunindo-as e dando-lhes uma voz mais ativa sobre o tipo de cultura que querem consumir. No ambiente de instabilidade vivido, é importante conectar essas comunidades aos artistas, de forma a serem capazes de criar uma atmosfera mais próxima, forte e sustentável. Num período onde fundos e apoios à cultura são mais incertos do que nunca, movimentos como crowdfunding, patronos ou DIY (“Do It Yourself” - Faz tu mesmo) emergem como percursos alternativos à criação e produção de espetáculos.
Movimentos sociais ocupam agora um papel fulcral como fonte de inspiração para artistas. No caso da dança, passam por capacitar a descolonização do movimento e abrir o espectro sobre o que o movimento pode ser - além dos padrões tradicionais que descendem ainda da dança clássica. Dar voz - e corpo - a artistas emergentes e que normalmente não estão representados é essencial para compreender a dança da próxima década - uma dança que ultrapassa fronteiras sobre quais são os limites e as regras dos corpos em palco, onde corpos de diferentes tamanhos, etnias ou género estão cada vez mais presentes, desafiando o público a ver em cena as novas silhuetas da nossa sociedade.
O mundo pode não ser mais o mesmo. Mas pode estar a evoluir para dar lugar a uma sociedade mais diversa e acessível. E a dança irá certamente acompanhar os desafios, as mudanças e as tendências que vão ditar este futuro ainda incerto e distante. Por enquanto, olhamos o presente com um sorriso no rosto e um caloroso aplauso a todos os bailarinos e coreógrafos: obrigada por fazerem chegar até nós o poder transformador do movimento.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.