A Serra da Lousã e do Açor escondem duas das aldeias de xisto mais carismáticas do país. O turismo tem trazido novas gentes ao Talasnal e Piódão, que assistem impotentes ao fenómeno do despovoamento, ao mesmo tempo que lhes rouba alguma da calma e silêncio característicos. Aqui faltou, primeiro, o emprego, agora, os habitantes. Mas são muitos aqueles que protagonizam o vai-e-vem de turistas, especialmente nos meses mais quentes do ano. Mas entre o turismo e o despovoamento, quem guardará as histórias destas populações?
Lisete Dias nasceu em Moçambique, morou em várias cidades do país, mas foi no Talasnal que, há 17 anos, decidiu abrir o seu restaurante. “Quando isto ainda era inóspito. Não havia uma estrada alcatroada sequer. As pessoas dizem que era maluca por abrir aqui um restaurante”, conta.
Ponto de paragem obrigatório no Talasnal – ou não fosse este o único restaurante da aldeia –, o “Ti Lena” é uma homenagem à última habitante da aldeia. Foi com ela, com quem conviveu ao longo de seis anos, que Lisete aprendeu a fazer o prato típico da região e o mais pedido daquela casa: a chanfana. "Mas eu já inventei umas coisas, não é exatamente com ela fazia. Eu ponho ervas aromáticas que a Ti Lena não punha", ressalva. O cabrito e bacalhau assado com batata a murro completam a ementa do estabelecimento, que nas paredes guarda a memória do último rosto que quem aqui viveu permanentemente. “Isto é tudo já gente de fora”, atira, entre tachos, enquanto prepara o serviço para almoço.
Nascida em Moçambique, Lisete viveu em Coimbra, Oliveira do Hospital e até Leira. Conheceu o Talasnal por acaso, através de um sobrinho que costumava praticar turismo de natureza. O espaço que deu lugar ao restaurante era uma antiga casa de férias de um morador da Lousã que Lisete remodelou.
É sábado, e o telefone não para de tocar. Lisete conta-nos que está “em época alta” desde maio. Com clientes de todo o território nacional, 80 % vêm do norte do país garante. Os estrangeiros – alemães, americanos, suecos… – eram muitos, mas a pandemia fez com que deixassem de vir.
O turismo é, neste momento, maioritariamente nacional. E as pessoas vêm em massas. “A própria comunicação social andou a apelar às pessoas para virem para o interior. Só que o interior também não tem infraestruturas para aguentar tanta gente. É o que está a acontecer”, adverte. O verão passado foi a loucura, as pessoas chegavam aí, não conseguiam estacionar o carro sequer e agora estamos no mesmo.”
Se fosse presidente de câmara, “condicionava um bocado o trânsito para a serra”, garante. “As pessoas antigamente vinham porque isto era uma aldeia sossegada. Isso vai-se perdendo com o turismo de massas.”
Já em Piodão, melhorar as acessibilidades e recuperar a traça tradicional da aldeia são as principais prioridades de José Lopes, presidente da Junta de Freguesia do Piodão. “Já se recuperou muita coisa, já se tirou muita tenha vermelha das casas e meteu-se ardósia, que é o tradicional, mas ainda há aí uma mancha [branca] ou outra”, nota.
Nos dias de hoje, a aldeia é um forte ponto de atração turística, principalmente nos meses de calor. Por isso, a estrada intermunicipal que liga Piódão à Serra da Estrela é uma prioridade para o autarca. “Já não faz sentido estarmos com uma estrada que tem mais de 40 anos. Desde que foi aberta e alcatroada nunca houve nenhuma melhoria, e é uma estrada que, em certas épocas do ano, nos traz mais turistas ao Piódão”, reitera. E são muitos os que, de visita ao ponto mais alto de Portugal Continental, não perdem a oportunidade de conhecer esta aldeia secular. “Fazem muito esse circuito. E toda a gente reclama, tanto os naturais e os residentes destas aldeias, como os turistas que nos visitam. A estrada está muito degradada, há avarias nos carros, há rebentamento de pneus. Portanto, tudo isso nos preocupa bastante.”
Entre os quatro anos em que foi secretário e os restantes como presidente, José Lopes está há 24 anos na Junta de Freguesia do Piodão. Hoje luta contra uma união de freguesias por falta de eleitores. “Neste momento estamos com dificuldades em ter um mínimo de eleitores para que haja eleições diretas. O mínimo são 158 e tínhamos 131 há dias”, afirma. Por isso, a autarquia tem sensibilizado naturais do Piodão, que, apesar de recenseados em Lisboa, estão reformados e passam na aldeia a maior parte do tempo: “Para uma freguesia na zona de Lisboa, que tem 40 ou 50 mil eleitores, meia dúzia não faz diferença nenhuma. Mas meia dúzia ou uma dúzia de eleitores, no Piódão faz toda a diferença.”
Tal como aconteceu em várias aldeias da Serra da Lousã, também no Talasnal, as pessoas foram abandonando a povoação, a partir dos anos 50, 60, à procura de emprego. “Na verdade, isto nunca teve muita gente. Quer dizer, teve nos tempos antigos. Mas, desde que se deu o boom da imigração, nunca mais a aldeia teve muita gente”, conta Lisete. “Os primeiros a reabitar a serra, depois, foram os estrangeiros que estavam para aí, os hippies.” Lisboa, Porto, Brasil, foram vários os destinos dos habitantes do Talasnal, que hoje, entre alojamentos locais e segundas habitações, não conta com nenhum morador permanente. Com o fecho da escola, muitos que ficaram preferiram mudar-se para a Lousã e “ainda hoje vivem lá alguns que nós chamamos os serranos.”
Em Piódão, ouve-se português, mas também espanhol e algum sotaque do Brasil. Por estes dias, os turistas sobem e descem as ruas da povoação e as paredes e chão de xisto tornam-se cenário de milhares de fotografias. Mas estarão estas aldeias a tornar-se apenas paisagem?
Manuel foi pedreiro e já andou “por muito lado”. Sentado numa ladeira, alheio às movimentações, este habitante de Piódão com 84 anos – o segundo mais velho da aldeia, depois do seu irmão de 89, nota – lembra quando as casas estavam todas cheias, “de famílias de 8, 9, 10 pessoas.” “As pessoas foram saindo”, relata, “saiam da escola, iam para Lisboa à procura de emprego e muitas agora já se reformaram e ficaram lá. Vêm cá só de vez em quando.”
A falta de emprego foi denominador comum para que estes serranos tenham lançado raízes noutros pontos do país e também no estrangeiro. “Muitos saíram e gostariam de estar cá. Se a oportunidade tivesse surgido antes de saírem, teriam ficado”, diz José Lopes.
As visitas fazem-se agora nas férias e em épocas festivas, altura em que a população de Piódão – com apenas cerca de 60 habitantes permanentes – é capaz de quadruplicar. “[Tentamos] manter a aldeia viva, para que não seja só uma aldeia fantasma e só para o turista visitar. Ter aqui alguém para os receber, para os informar e dar alguma atividade ainda à aldeia”, menciona o autarca, lamentando, no entanto, que “gradualmente os idosos vão desaparecendo” e que “não há nascimentos”, para que a população se regenere.
José Lopes tenciona manter-se por aqui. Em Piódão, tem também o seu negócio, o restaurante “O Fontinha”, que abriu, há 30 anos, como resposta ao desafio lançado pelo pai de transformar a sua mercearia, que ali se localizava, no primeiro restaurante da povoação. Na altura, encontrava-se em Lisboa, onde esteve durante oito anos a trabalhar na área da restauração. O empregador deixou-lhe a porta aberta para voltar, caso a experiência não funcionasse, mas a procura na aldeia já era muita e o negócio pegou.
[As entrevistas desta reportagem foram realizadas no final do último mês de junho.]