2021 foi o ano dos muros. Nada de diferente, por isso, dos que o antecederam. Perante a chegada de milhares de migrantes, a Polónia apressou-se a construir um muro ao longo da fronteira com a Bielorrússia, desígnio em que foi apoiada, pasme-se, pelo Presidente do Conselho Europeu. O mediterrâneo é cada vez mais um mar fechado, com tantos muros quantos os países que nele banham o seu território. Muros em vez de pontes. Muros em vez de braços. Muros que não contêm vírus, na sua intrépida liberdade alavancada pelo nacionalismo das vacinas. Muros, ainda, no racismo nosso de todos os dias, o das raças e o das classes sociais; muros, enfim, nas cidadelas digitais da auto-absorção narcísica.
Em retrospetiva, apenas nos é permitido um pessimismo metódico: a História não é nem uma seta apontada ao futuro, nem um círculo de eterno retorno, antes um dédalo de mil entradas e saídas, rota de bifurcações infinitas e de (im)possibilidades desigualmente distribuídas. Nada se aprende, necessariamente, nenhum conforto pode assegurar progresso perpétuo ou regresso sereno ao mesmo porto após circum-navegação; só uma fé demente pode afiançar aprendizagem e acumulação. A nossos olhos, o anjo anuncia que nada sabe, nem pode saber.
Mas o pessimismo metódico não mata a esperança, antes dela se alimenta. Talvez Ariadne construa um novelo, quem sabe a parte touro do Minotauro devore a parte Homem e nos devolva o sentido.
Porventura o estrangeiro ensinar-nos-á o caminho, como no poema em prosa de Baudelaire:
«— A quem mais amas tu, homem enigmático, dize: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos?
— Usas uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
— Tua pátria?
— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.
— A beleza?
— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
— O ouro?
— Eu o detesto como vós detestais Deus.
— Quem amas tu, então, extraordinário estrangeiro?
— Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe… as maravilhosas nuvens!». Andando pelo avesso, pelo outro lado, lá onde crepita a ferida e crescem as más ervas – talvez aí saibamos escrever nos muros contra todos os muros.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.