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José Anjos

“GNOSIS: DUAS EPÍSTOLAS DE SAMMUEL C. DAYTON À SUA JUVENTUDE” Obra literária de José Anjos,…

Texto de Gerador

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"GNOSIS: DUAS EPÍSTOLAS DE SAMMUEL C. DAYTON À SUA JUVENTUDE"

Obra literária de José Anjos, originalmente publicada na Revista Gerador 27.

Do poema nasceu o homem
— farto de estar sempre 
dentro da mesma carne

ao Carlos Barretto*

Ao longo da minha vida, mesmo depois de cumpridos todos os compromissos e tentativas de submissão esperadas de um homem da minha condição social e moral, não encontrei qualquer tipo de fé na adesão intelectual à religião. Nem tão-pouco encontrei virtude na transferência da consciência para deus. Encontrei, sim, muitos anos de sofrimento mais tarde e por via de certas emoções – umas minhas, outras roubadas aos livros –, algo a que posso chamar hoje de portas semânticas. Pesadas portas semânticas. 

Estas portas vieram a revelar-se falhas vulneráveis e destruidoras; vórtices negros que distorcem o tempo e o espaço, violando a sacralidade da luz e do caminho. Nunca soube à partida o que estava por detrás de cada uma delas – se desejo se significado – e muito menos o que fazer para as abrir ou perceber os seus limites. Muitas houve – e ainda há – quase impossíveis de detectar. Outras desapareceram ao ser abertas, o que dificultou a repetição do passo (para não lhe chamar retrocesso). E em muitas fiquei – e continuo – irremediavelmente preso. Mas há uma em especial que me atormenta – a grande porta –, tão pesada quanto esquiva a todos os ofícios da minha percepção, mas de cuja existência aprendi a não duvidar depois de ter descoberto na nudez cinzenta daquela manhã de 15 de Novembro de 1837 a minha insignificância torpe e silenciosa; quase mecânica; repetida e incompetente – tanto na tentativa feroz de me adaptar à vida mundana e esquadriada dos afectos (e outras construções) como na ventura de fugir dela com igual – ou pior – força e desespero. 

Tenho, pois, a sensação de ter vivido uma sucessão de vergonhosas derrotas, ao invés de uma só, oblíqua e cega, em queda determinada, como se quer de um homem vertical. Tornou-se difícil e penoso continuar assim; um progresso lento e enviesado; íntimo; violento; nem sempre existente; confuso, acima de tudo. A cada passo – duas portas. Multiplique-se.
Agora que quase nenhum caminho me resta e a poeira vasca da memória me cobre a fronte, há um vento leve e fresco que se acende na minha testa já húmida de sono; como se voasse por cima das mais altas montanhas, todas cobertas de neve e segredos; e enquanto voo, a minha respiração aberta é uma dessas portas que procuro; eu sou a porta.

Desperto estremunhado deste delírio pela voz da minha mulher. É chegada a hora do quotidiano almoço. Sento-me à mesa com a minha família e observo-os a todos um por um: os meus três filhos, a minha mulher, o meu irmão redondo e careca, a sua esposa, floral, como se tivesse brotado de um jardim e amadurecido segundo leis contrárias às que se aplicam aos homens feitos de carne. Recordo os traços do rosto saudoso de minha mãe, como se ali estivesse, como se fosse aquele um dos antigos almoços de família que se estendiam nas doces encostas dos domingos, sobre o mar.

Apercebo-me que esses almoços obedeciam a uma ordem natural das coisas que antecede o nascimento do próprio sol. Pego na colher – a mesma colher da minha meninice – e percebo então. A chave está – só pode estar – na infância. Tomara que houvesse forma de lá chegar!

* Este foi um dos textos que inspirou e veio a dar o título ao mais recente disco do trio do contrabaixista Carlos Barretto, os Lokomotiv, com Mário Delgado e José Salgueiro.

«Embora a música dos Lokomotiv seja inteiramente instrumental, José Anjos acaba por ter também uma participação involuntária em Gnosis. “Os poemas dele são lindíssimos e os títulos também”, comenta Carlos Barretto, revelando o porquê de se ter inspirado na obra de Anjos para nomear os temas Lugar sem lugar, Porta líquida e Gnosis (...)Talvez por isso, por esse nítido olhar ao espelho, não tenha resistido a escolher Gnosis para titular o álbum dos Lokomotiv.»in Público, 5 de abril de 2018.

II

Meu caro, 

Ficarias surpreso se viesses a saber que hoje vivemos tempos de honestidade — interior, claro. Jamais conseguiria ser inteiramente honesto para com os outros. Não sou dado ao trabalho em equipa de gabinetes e muito menos sou um desses nudistas sentimentais que pululam nas praias da literatura de verão e do seu verso excessivamente claro.
Talvez seja por isso que te escrevo. A realidade exterior, a que os outros habitam — e me habitam, na verdade — é como água até ao meu pescoço estanque: não entra, mas não me deixa mexer bem. Não os censuro, porém; agora já não.
Dizem que a única censura do homem é o tempo e que dele nasce a sua verdadeira perversidade e castigo: a juventude, a nossa e a dos outros e, ao mesmo tempo, onde ela não está — um oxímoro do corpo em si mesmo ou a sincronia de um século feito de carne, quase inteiro, que inevitavelmente acabará em breve (mas não sem que antes os seus prazeres devidos tenham sido liquidados e cumpridos com todo o regalo).
Quero que saibas que a culpa foi sempre minha. Não houve falsas esperanças, só dúvida e o falhanço de algumas certezas que acabaram por revelar-se terroristas brancos infiltrados nos meus cabelos ralos devido à idade, ao excesso de tempo (vulgo tédio) e à falta dele, às preocupações e outras tantas pressões: o contrato de empresa, o seu cumprimento, o inadimplemento, o açafate cheio de dúvidas para passar a ferro, o cheiro fétido do vinho de ontem ensopado nas roupas pedindo perdão ao corpo e à cama inexorável; aliás, latejando pelo perdão de alguém que se importe. 
Por esse perdão, pelo tenebroso medo do desespero da solidão e da culpa, arrisquei tombar pela vereda irreversível das relações que morriam à nascença, vítimas da projecção — essa perigosa arma de troca de afectos putativos. Arrisquei e falhei exemplarmente.
E de fracasso em fracasso, como um funcionário, fui conquistando sem querer (mas com mérito) a vontade de desistir — se é que se pode chamar vontade ao cansaço e surdez da alma. Paz a si própria (disse o corpo).

José Anjos

É formado em coentros, mas não exerce. Autor de livros como Manual de Instruções para Desaparecer, Somos contemporâneos do impossível, ou Uma Fotografia Apontada à Cabeça, para fugir das luzes da ribalta (e outros mariscos congéneres) continua a não gostar de coentros.

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