Mais de trinta anos depois, o disco Só resiste à voragem do tempo e segue viagem sem precisar de passaporte, pois a solidão acompanhada de um homem inquieto perante 88 teclas tem um nome: liberdade. E, sim, a intimidade desarmante de 15 canções reinventadas a voz e piano pode “condensar o mundo num só grito”.
Um ensaio sobre a anatomia musical de Jorge Palma a partir da (re-)audição de um dos mais icónicos álbuns da música portuguesa.
Beethoven, de cuja sonata n.º 8, opus 13, a “Pathétique”, o cantautor guarda memórias afectivas (a mãe desafiara o então menino de 11 anos a aprender os três andamentos a troco de 50 escudos), dizia que ser músico é aquele ofício que utiliza todas as liberdades que puder. A singularidade da obra de Jorge Palma vive e nutre-se dessa liberdade errante e insondável, sem princípio nem fim, que (é uma maluca que) sabe quanto vale uma nota, um acorde, uma melodia, mas também uma nuance, uma inflexão, um improviso, um silêncio – ou um beijo, como escreveu em “Enquanto houver estrada pra andar”.
É esse mesmo desejo (insaciado e ávido) de libertação, de inscrição num novo alfabeto, que percorre a atmosfera musical de “Estrela do mar”, em que o inspirado arranjo pianístico, à la Debussy, mimetiza o movimento cíclico das ondas, ora torrencial ora sereno – visualismo ainda mais acentuado pelo recurso do intérprete à técnica de cruzamento das mãos, que dançam e voam por cima das (teclas feitas) “águas”. É nessa alternância coreográfica de “marés” sonoras e interiores que reside a matriz da canção inaugural (e iniciática) do disco Só, numa espécie de manifesto poético sobre a condição humana, em favor do livre-arbítrio e da individualidade.
Modulando sábia e habilmente toda uma paleta emocional através de virtuosas dinâmicas interpretativas, Palma convida-nos a mergulhar nesse piano bem temperado pelo sal dos dias, como que convocando o poder revigorante do areal para o fraseado musical e invocando uma estrela-mulher que é guia, mas que não (se) impõe, reprime ou asfixia, e a quem só se está preso por vontade, como diria Camões. É a música, mais uma vez, a unir a vida do espírito à vida dos sentidos para nos embriagar de desejo e espanto. Esta (hipnotizante) estrela-do-mar – elemento que, mesmo quando quebrado, pode ter a capacidade de se regenerar e voltar a crescer – acaba por ser, para Jorge Palma, símbolo de cura e renovação, mas também força motriz, inquietação e reencontro: uma “chama invisível” que incendeia o peito, uma “coisa impossível” que faz acreditar.
O minimalismo do próprio título do disco (duas letras apenas) acaba propondo, desde logo, uma reflexão criativa sobre a natureza polissémica dessa aparentemente simples ideia, que transpira intimidade e mistério. Criar é, porventura, o acto de solidão por excelência – “a princípio é simples / anda-se sozinho”, como nos relembram versos lapidares de Sérgio Godinho. O absoluto contraste entre a brevidade da palavra (“Só”) e a sua vasta e complexa teia de significações inquieta-nos e faz-nos parar. Se pode evocar um estado emocional mais sombrio e agudo, não deixa também de revisitar aquela solidão e silêncio não poucas vezes ardentemente desejados que, em certos momentos, se tornam também meios de liberdade, como acreditava Paul Valéry.
Mas não se trata apenas de um homem sentir-se só ou então – algo bem diferente – estar a sós consigo mesmo, ou até na companhia do mais fiel amigo que se veste sempre a rigor, de preto e branco, para o acalentado (re)encontro com o cantautor (falo do piano). O letrista também brinca com a função adverbial do vocábulo, ligando-o às ideias de existir, duvidar, ter dois sóis, hesitar, inventar, destruir e às consequências daí resultantes. Como se este poema fosse uma mensagem sussurrada ao nosso ouvido e, ao mesmo tempo, um grito a céu aberto, uma declaração de intenções sobre um modo natural, espontâneo e despretensioso de ser-estar-agir que tem, contudo, implicações mais profundas e duais do ponto de vista vivencial, as quais não se inscrevem na banalidade e escapam a uma visão simplista, apressada ou estereotipada. Ou como se a solidão fosse, ironicamente, a consequência inevitável dessa fervilhante vida interior e dessas escolhas mais ou menos “arriscadas”, secretas e, amiúde, incompreendidas.
Há algo de universal e familiar que logo identificamos nesta canção, numa confissão que tem o condão de fazer ligação directa com um vasto universo de ouvintes que partilha uma gramática comum, aglutinando-os numa constelação própria. Ao mesmo tempo, somos invadidos pela certeza de que o tema em causa interpela pessoalmente cada um de nós. E esse duplo efeito no seu público é, sem dúvida, um dos traços maiores da arte de Jorge Palma, conferindo-lhe essa rara capacidade de vencer a efemeridade, de atravessar gerações, de rasgar janelas para lá do horizonte.
“Só” é, assim, provavelmente, a canção que melhor ilustra – não foi certamente inocente a sua escolha para título deste disco de prodigiosa revisão da matéria dada – um intérprete e compositor cujo percurso tem sido marcado por essa notória rasura na distinção entre a arte e a vida que John Cage também preconizava, com tudo o que isso implique de prolífico, dilemático, paradoxal e, acima de tudo, desafiante para a respiração do quotidiano. Ter duas almas em guerra (sabendo que nenhuma vai ganhar), fazer a cama numa encruzilhada ou ter as chaves do céu e do inferno (e deixar o tempo decidir) – versos centrais de “Só” e, diria mesmo, de todo o cancioneiro de Palma – são dualidades que parecem indissociáveis de um “excesso” de lucidez (essa “lucidez perigosa” de que falava a escritora brasileira Clarice Lispector) que anda, não poucas vezes, de mãos dadas com a solidão em sentido literal mas também com aquela, mais insondável e menos evidente, que se pode experimentar no meio da multidão (Baudelaire).
Esse (constante) desassossego do corpo e do espírito torna-se, assim, simultaneamente causa e consequência, casa e estrada, âncora e abismo. Como se, muitas vezes, se aspirasse a uma terra de ninguém, “lá / junto à tempestade”, sem chão nem céu, feita de limbos e contradições, onde habita a exaltação e a melancolia, a clarividência e o devaneio, a esperança e o desconcerto, a intensidade e a fragilidade, a claridade e a penumbra – um lugar onde tudo isso é verdade e está certo. Onde desenhar o tempo é estar serena, mas também inquietamente sentado à beira do mundo.
A tensão é recorrente e necessária em Jorge Palma, como o tema “Frágil” tão bem ilustra quer musical quer poeticamente. Aqui, mais uma vez, ele espraia a sua apurada técnica ao serviço do espírito (como Liszt acreditava) e derrama no piano a gravidade de um tema intemporal: ser de todos e não ser de ninguém. E vêm-nos à memória aqueles versos de Variações em “Estou além”, que bebem, de algum modo, na mesma fonte: “Porque eu só quero quem / quem eu nunca vi / porque eu só quero quem / quem não conheci”; “Estou bem aonde eu não estou / porque eu só quero ir / aonde eu não vou.”
Essa ansiedade é, desde logo, revelada pela toada obsessiva da mão esquerda, mas também pelo registo em uníssono (notas agudas) entre a voz e o piano no refrão, que enfatizam a urgência do clamor. As respostas instrumentais à voz, as pontes e interlúdios entre as secções cantadas e o repentista e fremente glissando no final da canção (que deixa no ar uma atmosfera “dissonante” e como que inacabada) são outros ingredientes que sublinham musicalmente uma fragilidade intensamente vivida que embarca no carrossel incerto e magnético da noite. Mas também uma mente em assídua ebulição, atraída pela cumplicidade com a escuridão e suas pequenas “mortes” e renascimentos, e pelo abismal silêncio nocturno onde o turbilhão interior vislumbra espaço para a dança catártica de ser e duvidar.
Em “Deixa-me rir” a abordagem poética é diferente, mas a temática, mais uma vez dual, não diverge muito do leitmotiv central do músico-andarilho que há dias completou 71 voltas ao sol: “Tens medo de te dar / e não é teu o que queres vender [não]”. Nesta canção maior, mais do que assumir um registo introspectivo focado declaradamente na primeira pessoa (como em “Frágil”), Palma altera o objecto, centrando o discurso na interpelação crítica do outro e assumindo o papel de uma espécie de consciência colectiva (que nem coro grego), apontando contrassensos e descontinuidades entre essência e aparência, espontaneidade e automatismo. A cativante ambiguidade do exercício é que esse outro tanto pode ser uma hipotética entidade amada (leitura mais imediata) como, de alguma forma, ele próprio, numa atitude de subtil e irónica projecção psicológica e auto-questionamento.
Vindo inicialmente a público no álbum O lado errado da noite, a versão (assumidamente despida) editada seis anos depois, em 1991, do tema “Deixa-me rir” é, uma vez mais, reveladora de uma urdidura pianística plena de nuances e detalhes, numa performance vocal em que Jorge Palma modula, com intensidade apurada (e exemplarmente captada no plano da sonotecnia), a verdade do seu timbre explorando múltiplos “cambiantes do seu sabor” ora no ataque ora na sustentação das notas.
A sua profunda sensibilidade enquanto compositor e intérprete fá-lo ainda vestir a tessitura musical com certeiros ornamentos melódicos, fruto de evidente maturação técnica, mas também de uma vincada densidade psicológica. A argamassa do álbum Só é, aliás, sempre moldada nesse pêndulo entre a arte de bem (re)tocar, a riqueza das letras, a limpidez da voz, a mestria demonstrada por José Manuel Fortes na captação sonora da emoção e o potencial acústico do antigo e mítico estúdio da Valentim de Carvalho. Não fosse também Só um disco arquitectado em modo sem rede, pleno de nudez, onde todos os pormenores ficam mais visíveis, ampliados e híper-expressivos.
E não resisto ainda a ressaltar dois detalhes técnicos que conferem maior élan a este tema. Por um lado, o acorde emblemático (de sétima da dominante) que abre a canção e faz a “chamada” para a suspensão instrumental que introduz sempre a secção A iniciada pelo verso “Deixa-me rir”, visto que essa expectante pausa coloca ainda maior ênfase no preâmbulo poético e abre mais espaço emocional e potência expressiva à entrada da voz a cappella e à entoação desse mote. São seis singelas notas que funcionam como acorde-síntese da peça, mas que têm já, na nossa memória auditiva (e afectiva), o condão de se bastar a si mesmas, a ponto de não precisarmos de mais nada para podermos identificar imediatamente a canção em causa. E, no fim das contas, é precisamente essa familiaridade e cumplicidade que ficam e permanecem incólumes à passagem das horas – esse rastilho que nos faz voltar, que nem eterno retorno, a certas obras artísticas como quem regressa a casa. Soma-se ainda o facto de, nesta versão pianística de 1991, Palma propor, na segunda vez que o tema retorna ao refrão, um subtil apontamento melódico “saltitante”, usando apenas a mão direita para ilustrar criativamente o excerto “há quem viva escondido a vida inteira”, como se essas notas traduzissem quase literalmente a ideia de peripécia, de percurso labiríntico, de “jogo do gato e do rato” – no fundo, de uma arte da fuga.
Falar de liberdade e das suas dualidades é indissociável da temática da estrada (e das suas metaforizações) no imaginário de Jorge Palma. Para ele, mais importante do que alcançar um dado destino é gozar bem a rota a descobrir, como vaticina em “Enquanto houver estrada pra andar”. E aqui é indesmentível a sua filiação em confessadas referências musicais como Bob Dylan, o qual é ilustrativo nestas palavras: “A felicidade não está na estrada que leva a algum lugar; a felicidade é a própria estrada.” Incluída como quinta faixa do disco Só, esta canção intemporal – que dispensa(ria) conjunturas de incerteza, medo e ansiedade para se revigorar ou actualizar – é um manifesto de esperança e resiliência colectivas, um apelo à (re)invenção de futuros, mas também um claro aviso à navegação sobre as facetas menos luminosas da dependência, da nostalgia e do materialismo.
“Enquanto houver estrada pra andar” é aquele tema-mote com que Palma tantas vezes encerra (assim também simbolicamente) os seus concertos, fazendo uma apologia do movimento incessante como salvação dos dias – inspirado pelo sopro do vento, pela mesma força que empurra as marés –, sendo imperiosa a viagem, o foco, a proactividade e o espírito crítico, ao invés de ficar simplesmente à espera do que possa acontecer. Daí que esta canção constitua, porventura, uma das paragens mais interventivas, até numa óptica social, do disco Só, algo não muito comum em Palma de uma forma muito explicitamente engagé ou convencional. Não obstante ser difícil esquecer alguns temas emblemáticos de vincada feição satírica como “Portugal, Portugal”, o seu jeito de solavancar consciências e espíritos prefere, em geral, outros caminhos como, de resto, o álbum de 1991 atesta, mais centrados nos labirintos do psicologismo e experiência individuais, em interrogações existenciais e em dilemas emocionais/amorosos.
Mas a ideia de estrada-viagem, de alguém que leva as “asas nos bolsos / e o coração a planar”, é omnipresente no seu imaginário desde sempre. Blaise Pascal, num dos seus momentos mais sombrios, afirmaria um dia que “notre nature est dans le mouvement… La seule chose que nous console de nos misères est le divertissement”. Para este pensador francês a infelicidade de qualquer homem residia numa única coisa: a incapacidade de permanecer quieto num quarto. E Palma subscreveria certamente esta ideia, não fosse a atitude de homo viator um dos seus traços mais vincados. A imagem pascaliana não deixa, aliás, de ser intemporal, ainda mais quando constatamos que uma das maiores pandemias do nosso tempo é precisamente o facto de passarmos demasiado tempo sentados. Numa entrevista dada em tempos, e quando questionado sobre o enredo de um hipotético filme sobre a sua vida, Jorge Palma voltaria a colocar a tónica na temática da partida, confessando que na primeira cena imaginava-se a soltar as amarras de um barco que largava o cais em busca de outras paragens. Aliás, na canção “Tempo dos assassinos” ele escrevera já estes belíssimos versos: “Quero as vogais todas abertas / quero ver partir os barcos / prenhes de interrogações.”
São várias as letras de Palma, inclusive no disco Só, que estão impregnadas desse impulso da partida e de um desconfinamento vital do corpo e da imaginação, mas também das tentações e contradições da estrada e dos seus desvios – feitas de viagens catárticas (excitantes ou tranquilizantes) da música, da noite, do sexo, do líquido (des)equilíbrio e do fumo. Porque a sua verve poética transpira essa errância, numa deambulação imprevisível e sem mapas ou bússolas no bolso. Na mente e bagagem deste cantautor-contador de histórias que se nutre da intuição, do improviso, do desassossego, do sobressalto, “há sempre qualquer coisa que está para acontecer” (José Mário Branco) e isso não deixa também de nos prender e seduzir, como uma espécie de incerteza cativante em que não é claro o desfecho ou em que não nos são transmitidas todas as coordenadas, ou em que não é “resolvida” a dualidade. Em Palma a dúvida permanece necessária (“será que ainda cá estamos no fim do Verão?”), como força e fragilidade, num balanço onde a razão, a lógica ou a linearidade não são obrigatoriamente quem mais ordena.
Neste imaginário que percorre o disco Só há também dois topoi incontornáveis, sem tempo nem espaço, sinónimos de utopia, evasão e liberdade. A geografia poética de Jorge Palma passa, assim, por um esperançoso bairro do amor que é um carrossel marginal feito de ternura, lugar de catarse das nossas “nódoas negras sentimentais” e onde há lugar para todos, impera a empatia e a vida pacata é tacitamente aceite como sinónimo de felicidade. E, não obstante, tal como em “Estrela do mar”, continua a interpelar-se uma presença confidente e cúmplice, que inspire alegria e compreensão.
A cartografia do reencontro vital com lugares onde Palma se lave de desencontro e poeira inclui ainda uma “terra dos sonhos”, canção que nos relembra o fascínio, poder e responsabilidade que advêm da liberdade e da tolerância: “Tens de olhar pra fora sem esquecer que dentro é que é o teu lugar.” A apologia da igualdade, do livre-arbítrio e de entrelinhas sem máscaras (imagem rica em sentidos) é novamente recuperada, mas desta feita o arranjo pianístico privilegia um ambiente estilístico inicial que nos remete para a escrita serial, à Anton Webern, dominado pelo pontilhismo das notas soltas. A canção é depois fechada igualmente de uma forma segmentada e enigmática (na linha do mesmo estilo de composição que a abre), mas agora inspirada na obra “Tierkreis” (Zodíaco), mais concretamente na sua melodia n.º 7, dedicada ao signo Leão, que Stockausen escreveu em 1974-1975.
Essa atmosfera musical sui generis que enceta e encerra o tema, como que feita de “estilhaços”, parece reforçar uma ideia de desligamento e diluição do indivíduo perante a incapacidade de sonhar e de vislumbrar essa terra prometida/adiada, como se a abordagem instrumental inicial e final constituíssem uma espécie de realidade paralela e externa à estrutura-base da canção. Esta última, por seu lado, é pautada por um ambiente ora tenso (o ataque às notas pelo músico é ilustrativo) e disfórico que a própria letra atesta (que nos interpela e agita), ora luminoso, fluido, vivo e directo no optimista refrão, movimentos esses intercalados por melodiosas digressões instrumentais em que Palma espraia a sua criatividade e capacidade interpretativa.
E como esquecer Lisboa neste mapeamento sentimental sem critérios preestabelecidos? Há no tema “Canção de Lisboa” uma radiografia do reverso, do rescaldo (entenda-se: rescaldo da monotonia, da boémia, do adiamento, da agitação, da embriaguez, do fingimento, do orgulho, da aparência, da euforia, da cegueira), de quem se coloca fora de si a olhar para dentro, assaltado pelo cansaço, mas também imbuído de um distanciamento lúcido e consciente pós-orgásmico. Palma bebeu em Mahler, no 3.º andamento da sua “Sinfonia n.º 1 em ré maior”, o tratamento instrumental que abre a canção, numa toada solene e moderada, como se desfilassem perante nós – que nem a marcha fúnebre (ilustrando a morte de um caçador) que o compositor checo-austríaco recria nessa passagem da sua obra – os destroços e ruínas da boémia e perdição nocturnas. Essa atmosfera é acentuada pela cadência mais lenta do fraseado musical, pelo menor número de notas empregues e pela gravidade do modo menor da secção A do tema. Ao mesmo tempo, é como se o eu, toldado pela ressaca existencial, estivesse a tentar tactear no escuro, em busca de algo que preencha o incomensurável vazio e o insufle de vida.
Mas há quase sempre um lado B em Jorge Palma. No refrão da mesma canção, já em modo maior e num ambiente ritmado, invoca-se interrogativamente nova figura tutelar, desta vez materna, num apelo afectivo (“mamã”), tocante e como que universal, que não nos deixa de fora (a voz aqui é colectiva: “nós”), pois as mensagens do letrista revelam essa permanente elasticidade, nessa virtude rara de nos fazer perceber o quanto as suas canções contam as nossas próprias vidas. Novamente, há um desejo de reconexão a um ente feminino enquanto refúgio e fonte de redenção-salvação, pois “há um divórcio entre o dentro e o fora” que mina os dias e a bondade, onde “não está só a solidão / há tristeza e compaixão”.
Porque no meio de todo o turbilhão há uma certeza maior e inescapável em Palma: a de que “o meu amor existe”. A intro lírica e singela, em modo intimista, deste tema convida-nos desde logo a entrar, a ficar nele, a sentir com ele, a nos revermos nele. Pois parece haver algo mais para lá da solidão, alguém que nos pode acolher e ajudar a sarar as feridas. É um retrato também utópico, mas nem por isso menos real e certeiro, numa declaração simples e serena, sem refrão (um dos temas mais curtos do disco), que não oblitera a complexidade de um sentimento (aparentemente) “paradoxal”: um amor que nos ensina a chegar, mas também a partir. Palma não privilegia apenas a compulsão da partida e a fuga como abertura espiritual. Também valoriza um sítio onde possa pendurar o chapéu (metáfora feliz do inveterado viajante Bruce Chatwin), que nem ave migratória tomada pelo instinto de retorno ao lar, ou que nem coração apaixonado, mas sempre sem obrigação.
Em Só não poderia faltar também uma personagem-ícone. “Jeremias, o fora-da-lei” é aquela canção (tocada anteriormente sempre à guitarra) em que Palma se atira claramente para o ambiente do ragtime, procurando rapidez, vertigem, fuga e desconcerto através de um inebriante movimento sincopado. A nossa vibração e encantamento perante esta figura singular que vive no fio da navalha, que escolhe sempre o lado de fora, que não embarca em conversas banais nem se fia em promessas habituais, que tem uma dimensão provocadora, são quase inevitáveis e Palma sabe bem disso. Mas não se trata aqui de usar uma fórmula que resulte, pois é por demais evidente o fascínio antigo do músico por esta forma de estar, de sentir, de expressar. É inscrita nesta canção uma verdade natural que brota de dentro, e isso basta-nos.
Para o desenho do alinhamento do último terço do álbum, Jorge Palma elegeu, na maioria das canções, um denominador comum: a ideia de fim (“avec le temps, va, tout s’en va”, cantava Léo Ferré, referência do intérprete). Isto além de os três últimos temas serem as canções com letras menos extensas e durações mais curtas de todo o disco. A declarada brevidade e despojamento ressaltam deste “andamento final”, mas nem por isso a densidade dos temas e a sua amplitude emocional são menores; só que, desta feita, o compositor dá explicitamente mais espaço ao ouvinte. Já a citada Clarice Lispector costumava aconselhar a que, no acto da escrita, não se esmagassem com palavras as entrelinhas.
Mas esta iminência do fim não é forçosamente sinónimo de drama ou infelicidade, não fosse Palma dotado de uma sensibilidade que não vê o mundo por um simples canudo. Se, de facto, em “À espera do fim” há a assunção de que se esgotou o “gozo de viver” porque os números foram colocados à frente dos amores ou porque invariavelmente se encara a preto e branco um programa que, na realidade, é a cores (metáfora tão conforme com a visão não binária e não simplista de um compositor que não olvida os “entres” e as margens), já em canções como “Viagem na palma da mão” ou “O fim” outras mundividências emergem. Uma delas é precisamente a ideia de que certas tradições-contradições podem ter uma função positiva no plano do autoconhecimento e também na fruição do mundo, ajudando-nos a abrir os olhos, a relativizar, a perceber melhor o que somos. Mas também a aprendizagem maior de alcançar uma “estação” onde o medo de estar só no meio da multidão já não nos assombra tanto a existência, ou a de que, nesta grande viagem, por vezes estamos e somos mais acompanhados do que à partida possamos imaginar, mesmo que numa “vizinhança” distanciada ou não confessada – “[pois] anda sempre alguém por lá / junto à tempestade”.
E como os últimos anos revelaram toda uma revolução pessoal em Jorge Palma, o eterno chevalier de la fortune. A colagem entre a arte e a vida pode ser plena de fascínios e potência, mas também de riscos e abismos. É um equilíbrio porventura sempre instável e não regrável, em que a enorme clareza de realidade aliada à insatisfação permanente, ao descompromisso total e a um crónico sentimento de inadaptação ao mundo podem ser tanto um “gatilho” inspirador como, não poucas vezes, um imprevisível e perigoso jogo em que no final se paga um preço demasiado alto por uma almejada “independência”.
Mas, sem fugir da sua essência maior, Palma tem vindo a propor um novo “arranjo” pessoal (aqui numa acepção que extravasa, sem dúvida, uma conotação meramente musical do termo) para a sua história, aceitando, relativizando e reinventando essas complexas dimensões, e mostrando-nos que estas podem ser plenas de criatividade, encantamento e identidade artísticas quando se alcança um (exigente, sim) ponto-dimensão de convivência possível entre as mesmas. Para essa renovada síntese, que lhe/nos é vital como lição maior de vida, concorre(ra)m o foco e resiliência pessoais, o amor que permanece, a amizade genuína e a entreajuda colectiva como luzes com um brilho mais forte. Porque, na verdade, a noite não tem apenas o lado errado, e porque até mesmo este pode ter um lado certo, em que fragilidade rime com agilidade.
Um dia perguntaram a Jorge Palma se ele mudaria algo na sua vida passada. Ele respondeu com o título de um filme realizado por D.A. Pennebaker em 1967, sobre uma tournée de Bob Dylan em Inglaterra: “Don’t look back.” Mas também poderia ter citado um verso seu: “O que lá vai já deu o que tinha a dar.” Pois, não obstante as voltas e contradanças pretéritas, pode haver uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância (Kerouac) e o longe pode, na verdade, ser aqui. O intérprete, compositor e letrista soube reacender e preservar sábia e saudavelmente aquela flama (pois não se pode guardar um rio quando ele corre dentro de nós, como reza certo poema de Jorge Sousa Braga) que o inscreverá sempre, sem rótulos ou formalismos, não numa fria e distante galeria de iluminados pois essa ideia não lhe agradaria de todo, mas num lugar onde sopra o grande vento límpido do mar, repleto de expectantes pianos à espera do seu instinto e talento naturais.
O piano é o instrumento mais completo até hoje concebido, pleno de possibilidades rítmicas, harmónicas e melódicas (quer como solista quer como acompanhador), e o seu espectro de notas é o mais extenso de todos os seus congéneres do universo musical. Essa versatilidade e amplitude não podiam ser mais conformes à descida íntima e errática às profundezas do ser que Palma empreende singularmente no disco Só, percutindo as cordas que nos ligam nessa grande caixa de ressonância a que chamamos “vida”.
Mais de trinta anos depois, este continua a ser, indiscutivelmente, um dos melhores discos que a música portuguesa viu nascer. Só não é apenas um álbum icónico do percurso de um cantautor (que é perfeccionista sim, mas...) a quem nunca agradou a ausência total de falhas, a quem a autenticidade também rima com a preservação da imperfeição. É a prova viva de que as grandes canções, aquelas que habitam a substância do tempo, não deixam de o ser se forem apenas tocadas ao piano. Pois há músicas que não sabem morrer, que são aquele chão que tem sonhos e vontade e que teimam em dançar connosco no mundo. Só é um momento irrepetível de profundo amor pelo piano.
*Texto escrito ao abrigo da antigo Acordo Ortográfico.
Sobre Paulo Pires
Paulo Pires é gestor cultural e programador. Tem um percurso profissional de mais de 20 anos nas áreas da cultura, artes, criatividade e mediação.
Foi adjunto da ex-Ministra da Cultura, assessor do Director-Geral das Artes, director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, director artístico do Convento São Francisco, programador no Município de Loulé e coordenador da programação cultural no Município de Silves, entre outras funções.
Actualmente, é assessor (para a cultura, artes e património) da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P..
Autor da obra Escrytos – crónicas e ensaios sobre cultura contemporânea (2017), editada por João Paulo Cotrim - estando no prelo um segundo volume para o início de 2024 -, assina inúmeras palestras, moderações, cursos e artigos de opinião sobre estas temáticas.
Escreve regularmente no Ípsilon/Público, Observador e Blitz/Expresso.