As ações humanas amiúde sustentam-se em visões antagonistas dos fenómenos e do que é considerado correto e errado (estes mesmos conceitos mutuamente excludentes). Apesar da complexidade e da multidimensionalidade do real-social em que nos posicionamos, movemos, pensamos, sentimos e intervimos, e de este sofrer mutações várias cada vez mais velozes, tendemos para a simplificação das aprendizagens de modo a criar o grupo das coisas e das pessoas puras e o outro grupo, repleto de maleficências, corrupção, impurezas. A autêntica psicologia social em prática, com a definição do in-group e do out-group e dos privilégios e talentos do primeiro face às fraquezas do segundo.
Todavia, este divisionismo que surge como simplista no que diz respeito à contemplação de todas as experiências do universo é, na verdade, bem mais intrincado na sua compreensão profunda. Geralmente porque inclui crenças e valores que pertencem a uma mesma causa, mas cujos comportamentos se revelam contraditórios entre si.
Veja-se, por exemplo, o caso da proteção dos animais no seu direito à existência. Nas sociedades ocidentais habituámo-nos a hierarquizar a vida dos animais em três níveis: aqueles que consideramos por bem valorizar (vários animais selvagens, por exemplo, mamíferos), os que não é problemático assassinar para comporem o nosso menu omnívoro (como o porco, a vaca, o frango ou o peru) e os que nem a uma “missão” têm direito por serem vistos como repulsivos (os exemplos mais sonantes são os insetos e alguns répteis).
Ora, sendo a vida uma virtuosidade plena, aquela protagonizada por qualquer animal deveria valer tanto quanto a de outros animais e a das pessoas, mantendo assim o equilíbrio sustentável dos ecossistemas. Não podemos ser coerentes na salvaguarda de determinados animais que nos são queridos quando expomos, ao mesmo tempo, indiferença face ao sofrimento e à matança de outras espécies.
O mesmo problema paradoxal acontece com o mundo das profissões. Quantas não são as vezes que apreciamos o trajeto feito por um profissional de renome na sua área, elogiando o árduo empenho que este teve na construção da sua carreira. Porém, num mundo em que a apreciação dos labores acontece de modo desigual, o que se traduz numa injustiça ao nível da remuneração dos mesmos, não deixa de ser frustrante para quem tanto se esforça nas suas limpezas, nos seus atendimentos ao público, nas suas curas de doenças ou nos seus ensinos auferir centenas de vezes menos do que um futebolista ou um cantor que é por muitos venerado.
Dos trabalhos comuns não reza a História, mas as condições para a existência da mesma são sobretudo criadas pelos desconhecidos a quem não são validados os feitos de afinco. Por isso, quem treina, treina, treina – os pés ou a voz – e ganha milhões não o consegue apenas pelas suas insistência e não-desistência, dado que muitos fazem o mesmo e são permanentemente esquecidos ou encarados como seres banais e indignos da construção de memórias que lhes digam respeito. Aqueles ricos atingem essa riqueza porque temos representações distintas daquilo que cada profissão pode receber e nos conformámos a que certos mundos de negócios efetuem milionárias transações financeiras suspeitas sem pudor. Esse conformismo é o permissor do já supramencionado divisionismo ou dualismo de critérios, que nos coloca simultaneamente em lutas cívicas por melhores condições de vida dos trabalhadores precários e em estádios de futebol que se tornam recintos de tribalismo e de reconhecimento social exagerado dos talentos individuais desportivos.
Estes dois exemplos são representativos das dificuldades humanas em demonstrar consistência em várias das suas posições que, no entanto, a humanidade amplifica como eticamente recomendáveis, metendo tudo para o mesmo saco. Os seres humanos mais demagógicos tendem a esquecer-se que a efetividade das causas está não só no seu impacto positivo sobre as entidades que defendem como também na credibilidade que transparecem junto de outros indivíduos que poderão apoiar ou opor-se às convicções e movimentos dos primeiros. Mas a falta de coerência revela-se como um dos piores males das relações humanas que transforma as intenções de proteção em esquemas de hipocrisia.
Sem dúvida que as intervenções de cidadania não podem apenas ser um projeto político, por muito benevolente que este pretenda ser. Elas precisam, igualmente, de autoquestionar-se, de se colocar em causa, de se pressionar para que existam realisticamente em prol de todos os que desejam cuidar. Somente assim conseguirão prosperar numa dialética de interesses, consciências e vontades.
Se quiseres ver um texto teu publicado no nosso site, basta enviares-nos o teu texto, com um máximo de 4000 caracteres incluindo espaços, para o geral@gerador.eu, juntamente com o nome com que o queres assinar. Sabe mais, aqui.