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Passamos fome e frio para pagar ao senhorio

Nas Vozes Coletivas de hoje, a Habitação Hoje fala sobre a situação do arrendamento em Portugal e de como “enquanto houver pessoas em situação de sem abrigo, haverá sempre alguém para nos lembrar que se deixarmos de pagar a renda, porque podemos perder o trabalho, porque não aceitamos as condições precárias, ou fugimos do nosso marido abusador, acabaremos também nós sozinhos, na rua.”

Opinião de Vozes Coletivas - Habitação Hoje!

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O problema da habitação é  um problema histórico e a sua manifestação atual é resultado de décadas de políticas públicas que, apesar de apresentadas como de assistência à classe trabalhadora, servem apenas os interesses dos proprietários e dos grandes grupos de investimento. Temos vindo a expor e explorar estas políticas e de como assentam numa desresponsabilização do setor público em cumprir um direito constitucional e na contínua e quase exclusiva delegação nos privados1. Falamos de políticas neoliberais como a renda acessível, os subsídios à renda, e de todas as medidas que passam pela transferência de dinheiro público para os privados, mantendo e alimentando a desigualdade e a própria degradação do Estado Social, em vez de reforçar e melhorar o sistema público, medida que de facto poderia resolver estruturalmente o problema. O que fazem estas medidas é perpetuar os preços altamente especulativos do mercado, sendo que a degradação das nossas condições de vida aumenta em proporção com o enriquecimento dos senhorios e dos capitalistas em geral, através de rendimentos do trabalho que são transferidos para o capital através do aumento dos custos da renda, alimentação, saúde ou educação. 

Todos aqueles não abrangidos pelos míseros 2% de habitação pública ficam sujeitos ao mercado de arrendamento e portanto ao contínuo empobrecimento. A fatia dos rendimentos gasto na habitação aumenta2 e as casas estão em cada vez piores condições, somos continuamente empurrados para situações marginais, precárias, que dificultam o acesso a todos os outros direitos básicos - como a saúde, a educação, o trabalho - e que perpetuam e potenciam a exploração. As situações limite vêm quando a descriminação é acumulada, mulheres, mães solteiras, vítimas de violência doméstica, pessoas LGBTQIA+, imigrantes, idosos e crianças. 

O aumento do custo da habitação tem sido um eixo principal neste aumento da exploração, e é através das políticas do Estado, enquanto gestor da pobreza, que se legitima o maior ou menor grau de exploração da classe trabalhadora. As ilhas do Porto, habitação da classe trabalhadora na cidade do século XIX, voltam a ser a habitação da classe trabalhadora e pensionista mais desfavorecida na cidade do século XXI. Isto porque as casas, degradadas, sem condições de habitabilidade e salubridade, têm efetivamente preços abaixo dos valores do mercado e são, para muitas pessoas, a habitação que conseguem pagar. Muitas vezes sem contrato ou com contratos que dizem explicitamente “sem condições de habitabilidade”, são vizinhos de alojamentos locais reabilitados e nómadas digitais, condição contraditória mas paradigmática de como a luta de classes se manifesta na questão da habitação.

O modo como se atribuem benefícios fiscais a estrangeiros ricos3, que facilitam e premeiam a sua vinda, é inversamente proporcional às atrocidades institucionalizadas no tratamento de imigrantes pobres que chegam ao nosso país para trabalhar. Para estes a vulnerabilidade associada à espera de regularização no SEF sujeita-os a um ciclo de  precariedade e exploração no trabalho, que se traduz em baixos rendimentos e ausência de contrato, que aliado à xenofobia e racismo, obrigam estas pessoas as piores barbaridades do mercado de arrendamento: vivem em casas sobrelotadas, insalubres, sem acesso a casas de banho, cozinhas e em edifícios com risco estrutural. Hoje multiplicam-se as situações em que se corre perigo de morte dentro de casa4 ou em que se morre mesmo5.

Dirão os menos familiarizados que estas pessoas devem denunciar a situação, que há instituições próprias a quem compete a fiscalização. A verdade é que nenhuma instituição pública se ocupa de fiscalizar situações ilegais de arrendamento e responsabilizar senhorios. A degradação das instituições públicas parece justificar a incapacidade do Estado de resolver problemas, mas a verdade é que a resolução dos problemas não se alinha com os interesses de classe dos senhorios e proprietários que o Estado representa. 

Sem soluções públicas e incapazes de aceder ao mercado, o número de pessoas  em condição de sem abrigo não para de aumentar e consequentemente multiplicam-se situações em que as pessoas se veem obrigadas a encontrar alternativas desesperadas para ter um tecto, como ocupações e construção de barracas, tendo depois de lidar com a criminalização dos seus actos, que as deixam em situações ainda mais vulneráveis6, porque trabalhar não é suficiente para ter acesso a uma casa e a uma vida digna. 

 Não é de hoje que o modo de produção capitalista “necessita e reproduz uma parcela sobrante de mão de obra ao não torná-la proletária e não garantindo as suas condições de reprodução integralmente, reproduzindo formas de trabalho e produção ligadas à sobrevivência.”7 A crise na habitação aumenta este exército de trabalhadores sem teto, os que têm de ir viver cada vez pior e cada vez mais longe, os que gastam cada vez maior parte do seu salário para pagar uma casa, se aquecer e comer, e gastam cada vez mais horas em deslocações. Somado à inflação dos preços dos bens essenciais, são cada vez mais os testemunhos de quem deixou de tomar medicação, ou comer, para continuar a pagar uma renda demasiado alta, mas que será melhor do que acabar na rua.Pois isto é uma condição essencial à manutenção do estado das coisas.8 Enquanto houver pessoas em situação de sem abrigo, haverá sempre alguém para nos lembrar que se deixarmos de pagar a renda, porque podemos perder o trabalho, porque não aceitamos as condições precárias, ou fugimos do nosso marido abusador, acabaremos também nós sozinhos, na rua. Só quando houver uma oferta pública, que responda às necessidades reais da população é que poderemos começar a efetivamente resolver o problema. Até lá, somos carne para canhão na guerra da classe capitalista por mais lucro.


1 https://gerador.eu/lagrimas-de-crocodilo-e-o-pantano-chamado-mais-habitacao/
2 Por exemplo, a renda acessível máxima de um T1 no Município do Porto (775€) é maior do que o salário mínimo nacional (760€).

3 https://gerador.eu/as-cidades-sao-de-quem-as-pode-comprar/

4 https://www.rtp.pt/noticias/pais/derrocada-no-porto-residentes-viviam-em-situacao-de-sobrelotacao_v1482955

5 https://www.dn.pt/local/dois-mortos-e-dez-feridos-em-incendio-na-mouraria-15782294.html

6 https://habita.info/camara-de-lisboa-criminaliza-vitimas-da-crise-de-habitacao/

7 ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Editorial Boitempo; 2015; p.157

https://gerador.eu/habitacao-hoje-mexer-na-habitacao-e-mexer-com-o-sistema-abole-as-fundacoes-em-que-isto-funciona/

-Sobre Habitação Hoje-

A Habitação Hoje é uma organização do Porto que luta pelo cumprimento absoluto do Direito à Habitação e para isso trabalha em duas frentes. Nas ruas e nos bairros, junto de quem é mais afectado pela falta de acesso a uma habitação digna e no estudo e desconstrução das políticas que nos trouxeram até aqui.

Texto de Habitação Hoje
Fotografia de Simone Albano
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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