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“Passei de funcionária eficiente a funcionária medíocre”. Quando a gravidez é motivo de despedimento

Era inverno e, de manhã cedo, estava muito frio. O inverno no Porto costuma ser…

Texto de Carolina Franco

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Era inverno e, de manhã cedo, estava muito frio. O inverno no Porto costuma ser rigoroso, mas Júlia estava entusiasmada por sair de casa. Era o primeiro dia em que saía para trabalhar depois de estar de baixa de maternidade e já sentia falta de se arranjar e voltar a ter uma rotina. Vestiu um casaco, pôs a mala ao ombro e dirigiu-se à loja em que trabalhava há quatro anos e era efetiva. Trabalhou durante os nove meses de gravidez, mas o ambiente não tinha sido o melhor. A chefe, que acabou por se tornar amiga, disse-lhe: “gostava muito de ficar feliz com esta gravidez e de lhe dar os parabéns, mas devo dizer que estou muito desiludida”. Podia ter sido só uma fase, Júlia estava certa de que aquela manhã de inverno seria um recomeço. 

Nessa manhã de inverno tinha 30 anos e uma filha recém-nascida em casa. No dia anterior, tinha telefonado à chefe a perguntar como fariam com a dispensa para amamentação. Estava disposta a adequar esse horário às necessidades da empresa, a chefe disse-lhe apenas para se apresentar à hora do costume na loja. Assim fez. “Ia a pousar a carteira e a minha chefe disse: ‘não vai pousar a carteira, vai imediatamente ao Tribunal do Trabalho saber quanto é que eu lhe devo, a partir de hoje não trabalha mais aqui’.” De regresso ao trabalho, já com uma resposta do tribunal, a chefe que achava ser sua amiga tinha já uma carta em que se lia que prescindia dos dias que Júlia teria de trabalhar para a entidade empregadora, acompanhada de um chefe com o valor a pagar.

Hoje, Júlia tem 45 anos. A sua bebé recém-nascida já tem 14. Diz que “há males que vêm por bem”, mas continua a recordar o que viveu com mágoa. Desde a altura em que passou por este despedimento repentino, o número de mulheres despedidas por estarem grávidas aumentou. Só em 2020, foram comunicados à Comissão Para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) os motivos de 2107 não renovações de contratos, mais 20% do que no ano anterior, a trabalhadoras grávidas ou pais a usufruir da licença parental. 

Os despedimentos motivados pela gravidez de uma trabalhadora não se cingem a uma determinada zona geográfica, a um tipo de emprego ou a uma geração. Inês tem 21 anos, vive e trabalhava no distrito de Setúbal — até a empresa de trabalho temporário que a empregava, com contratos precários, ter anunciado a rescisão. Na verdade, este desfecho não foi assim tão surpreendente para si. “Como era uma das pessoas que, por vezes, batia de frente com os superiores, eles pouco se importavam com o que eu dizia. Era como se eu fosse só um número”, conta.

Inês sabia que não podia ser tão simples assim. Foi informar-se à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e teve a confirmação de que não havia uma justa causa para a rescisão do contrato. Pouco depois, entrou em baixa de risco e a empresa continuava a insistir na rescisão. Neste momento, está a gozar a licença de maternidade mas sabe que vai ser despedida assim que esta terminar. “Para mim é um alívio, mas vão ter de me pagar tudo aquilo a que tenho direito”. 

“Nós mulheres somos mais discriminadas se tivermos de sair por questões relacionadas com os nossos filhos. A um homem não perguntam se tem filhos numa entrevista de emprego, a uma mulher perguntam quase sempre. Se tiver, e se forem pequenos, é muito pouco provável ficar no emprego a que se está a candidatar”, partilha Inês. 

Depois do despedimento vem o medo — de não conseguir responder às despesas que estão por vir, de não ser a mãe que se quer ser, de não conseguir arranjar um novo emprego. Júlia e Inês sentiram-no, em momentos diferentes das suas vidas. O mesmo aconteceu com Joana, Sofia, Isabel, Madalena, Sara, Mariana, Matilde, Ana, Beatriz, Maria, Catarina, Rita e Clara. O medo assaltou-as a todas, em algum momento. Às vezes continua a aparecer-lhes nos sonhos. Escudadas por nomes fictícios, contam-nos as histórias reais do momento em que se sentiram mais impotentes, quando só queriam poder viver a maternidade em pleno. 

“Quando soube que estava grávida pensei: ‘o meu contrato vai voar’.”

A história de Madalena, de 33 anos, é daquelas em que os sinais foram aparecendo, mas quis acreditar que tudo poderia melhorar. Quando foi à primeira entrevista de emprego, disseram-lhe que a vaga a que se candidatava já existia e que a pessoa que lá estava se tinha ido embora “porque o marido foi para o estrangeiro e ela ia atrás”. Passado um mês, já enquanto colaboradora da empresa, soube que na verdade a pessoa em questão ia passar a efetiva e queriam oferecer-lhe um novo contrato com outro nome de empresa, para que legalmente não tivesse de passar aos quadros, e não aceitou. “Eles acham-se acima da lei”, diz. 

Com a chegada da pandemia, os funcionários em lay-off trabalhavam quarenta horas que não eram pagas, em vez das duas horas que estavam no acordo. Não conseguiam ter tempo para arranjar um part-time para compensar o corte salarial. Quando Madalena anunciou que estava grávida, a reação não foi muito animadora: “na altura pensei que já tinha visto funerais mais animados”, diz a rir. Na entrada do outono de 2020, as viagens de carro que tinha de fazer tornaram-se incomportáveis. Às 26 semanas de gravidez já tinha muitas contrações (e outras complicações maiores) e a médica achou melhor passar-lhe uma baixa. Nesse mesmo dia, ligou para o sócio maioritário da empresa, que lhe disse que só queria o seu bem estar e que “tudo corresse pelo melhor”.

Horas depois, pediu a Madalena que se apresentasse no escritório no dia seguinte. Quando lá chegou, deparou-se com “uma data de recibos para assinar”. “Ele e o outro sócio disseram-me que me iriam despedir, que nada tinha que ver com o facto de eu estar grávida, mas porque queriam alguém com mais experiência. Deram-me um acordo de revogação a dizer que não me conseguiam manter lá por causa da pandemia e da faturação estar a baixar — o que era mentira”, explica. Não assinou nada e dirigiu-se à ACT e ao CITE. Mas quem a viria a ajudar mais seria uma advogada que já tinha apoiado duas pessoas que saíram da mesma empresa. 

Os patrões de Madalena propuseram um acordo com uma compensação financeira que diziam ser o dobro do valor que a lei previa. A advogada acabou por lhe explicar que estava longe de ser verdade. Um dia, recebe um e-mail a dizer que tinha sido um mal entendido, afinla não tinha sido despedida, e tinha até faltas injustificadas. Com o aumento do stress, Madalena entrou em trabalho de parto e teve de ser internada durante dois meses. Não podia receber visitas, passava os dias a pensar, a conversar com as suas colegas de quarto e em chamadas com a família e a advogada. Às vezes, dava por si a pensar: “esta criança ainda nem nasceu e já está a ser culpabilizada”. Houve até um dia em que se lembrou de uma antiga chefe, noutro emprego, que disse que não ia contratar mais mulheres porque três trabalhadoras tinham engravidado. Sentiu aí a dimensão de um problema que começava a ver que era estrutural.

Com a sua advogada, que diz ter sido “incansável”, conseguiu chegar a um acordo e provar que o seu despedimento tinha sido motivado pelo facto de estar grávida. Pouco depois, a empresa não só contratou alguém para o seu lugar com menos experiência, como aumentou a equipa. Madalena, que trabalha desde os 17 anos e vive na área metropolitana de Lisboa, nunca tinha sido despedida. Está pela primeira vez a receber o subsídio de desemprego, tem ido a muitas entrevistas de emprego, mas não está muito otimista. Envia CVs desde a altura em que esteve internada.

Nos dois meses em que esteve internada, Madalena esteve sempre em contacto com a advogada e à procura de um novo emprego

Ana começou um estágio profissional numa instituição de trabalho humanitário. Na altura tinha 28 anos e estava entusiasmada por poder trabalhar com um propósito. No final do estágio, ofereceram-lhe um contrato de seis meses. Não era a situação ideal, mas era uma forma de continuar na empresa. Em março de 2020, como grande parte dos portugueses, entrou em teletrabalho. Num desses dias em que estava a trabalhar por casa, descobriu que estava grávida. Houve logo um misto de sentimentos: por um lado, a felicidade por vir a ser mãe, por outro, o medo de não ver o contrato renovado ao final dos seis meses. “Quando soube que estava grávida pensei: ‘o meu contrato vai voar’.” 

Por esta altura, já tinha percebido que para algumas pessoas na empresa em que acreditava tanto no início do seu percurso, “algumas pessoas são números”. “É muito irónico, tendo em conta o tipo de ação que promovem”. Estava tudo planeado para que pudesse regressar depois da licença de maternidade mas, mais cedo do que esperava, ficou com baixa de gravidez de risco porque não podia continuar a fazer viagens de carro tão longas, entre o distrito em que vivia e o distrito em que trabalhava. A baixa não era uma opção para si, queria continuar a trabalhar. Sugeriu teletrabalho e disseram-lhe que “não valia a pena”.

Legalmente, o teletrabalho era uma opção, mas um dos chefes deixou bastante claro que ali não era permitido — mesmo para quem fazia trabalho de escritório. Ana recorda-se do dia em que disse para todos ouvirem que “se não quisessem voltar, que pusessem baixa”. No final de contas, a baixa teve de ser a opção de Ana. Nos recursos humanos, perguntaram-lhe com naturalidade: “nós agora já não te podemos despedir, pois não?” Ficou atónita. Tinha havido uma “limpeza geral”, com muitos despedimentos, mas estranhou a pergunta dos recursos humanos porque até ali, sempre lhe falaram numa renovação de contrato. 

A um mês da filha nascer, todos os dias se questionava se iria receber uma carta registada a comunicar a rescisão. Mas todos os dias continuava, também, a ter a esperança da renovação. Quando a carta chegou e foi tentar perceber a justificação, disseram-lhe que “ainda por cima ia voltar com redução de horário”. “Não se tentou disfarçar o motivo do despedimento. Eu sei que não fui despedida por incompetência, foi por ter uma filha”. Ligou para a ACT para perceber o que podia fazer a seguir, que lhe disse que podia contactar a CITE para saber se o seu despedimento tinha sido comunicado. 

Legalmente, as empresas que despeçam trabalhadoras grávidas são obrigadas a comunicar esse despedimento à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). Joana Pinto Coelho, advogada especialista em Direito do Trabalho e Parentalidade, diz que, desde logo, “existe um mundo laboral muito masculinizado e as mulheres são prejudicadas pela dupla jornada que fazem”. Além do trabalho na empresa, assumem grande parte das tarefas de casa, que não lhes permite ter a mesma disponibilidade que os homens. E em momentos de descriminação, “há muitas mulheres que assinam contratos que respeitam a uma necessidade imperiosa que elas têm de subsistência, e que não protegem a situação de eventualmente virem a engravidar”. O mundo do trabalho em Portugal ainda não está preparado para que as mulheres, que representam uma esmagadora maioria das baixas de parentalidade, possam ser trabalhadoras e mães, sem a preocupação de virem a ser dispensadas — garante a advogada.

“Num contrato a termo, que é feito por 6 meses, depois mais 6 meses, se a pessoa engravida entre estas renovações, chega à terceira renovação e é despedida sem que se dê justificação. Muitas vezes as pessoas podem ter a percepção de que realmente há ali descriminação pelo facto de serem mães, mas depois há aqui uma questão de prova que se torna complicada”, explica Joana Pinto Coelho. Ana era um desses casos; sabia que estava a ser despedida por estar grávida, mas não era fácil provar. 

Na licença de maternidade de Ana, começaram a surgir mais preocupações. o drama tornava-se cada vez mais real. “Nos primeiros dias não foi fácil. Eu olhava para a minha filha e pensava: ‘o que é que eu vou fazer à minha vida?’” A licença não ia durar para sempre e, quando acabasse, ia encontrar-se com uma realidade que receava: não encontrar um novo emprego.

Neste processo, teve sempre o apoio do companheiro, que tentou que conseguisse viver os primeiros tempos de maternidade em pleno. Mas havia sempre algo mais forte do que Ana: “nem a licença de maternidade da minha filha consegui aproveitar, estava sempre a pensar que tinha de trabalhar”. Foi a várias entrevistas de emprego — em várias perguntaram se tinha uma filha, respondeu que sim, e quando respondeu a idade “torceram o nariz”. Acabou por arranjar emprego nove meses depois e perguntaram-lhe se queria usufruir da redução de horário. Abria-se, assim, uma janela. 

O medo. Fica difícil fugir do medo do que está por vir. Sara foi surpreendida por uma gravidez de gémeos e de um filho, passou a três. A sua história não é muito diferente da de Ana: teve uma gravidez de risco, pediu para ficar em teletrabalho, disseram-lhe que tinha de ir de baixa. No contrato seguinte passaria a efetiva, mas recebeu uma carta de não-renovação de contrato, em casa, sem qualquer justificação. Abriu um processo contra a empresa, “que os assustou, mas não deu em nada”. Soube por uma colega que foi despedida porque o marido da chefe tinha ficado desempregado e passaria a ocupar o lugar que lhe estaria destinado quando regressasse. 

“É tudo demasiado triste. Ainda me encontro em licença de maternidade, que termina no final de maio, e serei uma mãe de 3 à procura de trabalho. Quem vai empregar uma pessoa que tem que ir buscar os filhos à escola, dar-lhes atenção diariamente e ficar com eles em casa quando estiverem doentes?”, pergunta Sara.

Há processos mais demorados, em que o veredito final de arrasta. Há outros, que não duram mais do que um dia. Clara trabalhava como designer numa loja do distrito de Lisboa quando contou à sua superior que estava grávida e foi despedida informalmente no dia seguinte. “Disseram que até iam falar comigo no dia anterior, mas que eu me antecipei com a notícia da gravidez e não tiveram coragem de falar nesse dia.” Informaram-na de que iam extinguir o posto de trabalho, mas sabia que isso dificilmente aconteceria porque era a única a fazer um trabalho essencial a uma empresa pequena. O contrato da pessoa que a viria a substituir foi feito em nome de outra empresa, para que não houvesse alguma prova que indicasse que a motivação do despedimento era a gravidez de Clara, veio mais tarde a descobrir. 

O processo de despedimento acabou, afinal, por ser longo. Clara fez queixa ao CITE e à ACT e conseguiu continuar a trabalhar por mais quatro meses. Recorda-se de um dia em que o ACT fez uma visita surpresa à empresa: “com medo que descobrissem coisas que não queriam, esconderam duas colegas minhas na cozinha, para no caso de eles [ACT] perguntarem onde estavam, dizerem que não se encontravam no escritório”. Uma dessas pessoas era a trabalhadora que a vinha substituir, ilegalmente, a outra era uma colega que tinha acompanhado de perto todo o processo.

No caso de Mariana, de 22 anos, tudo parecia estar a correr bem. Trabalhava numa loja no distrito de Setúbal e descobriu que estava grávida no segundo confinamento obrigatório. Por essa altura, o seu contrato já estava a acabar e teve medo. “Por incrível que pareça renovaram, o que estranhei”. Quando a filha nasceu, num dia quente de agosto, o trabalho não era uma das suas maiores preocupações. Até que, dias depois do nascimento da filha, recebeu um e-mail a dizer que o contrato não ia ser renovado, desta vez, e que só o tinham feito antes para a empresa receber o apoio financeiro do Estado por causa da situação pandémica. No novo emprego que arranjou, não foi muito mais fácil, teve de abdicar do período de amamentação. “Disseram-me logo que não me contratavam, se eu quisesse”, conta. 

Muitas trabalhadoras são despedidas sem aviso prévio. Recebem uma carta registada em casa, sem contar.

Ficar sem emprego e sem bebé

A história do despedimento de Beatriz, de 31 anos, é diferente das outras. Ao contrário de muitas mulheres que encontraram no bebé que viria a nascer a força de que precisavam para continuar, ficou sem ter ao que se agarrar. Trabalhava num supermercado no distrito de Santarém com um contrato de seis meses, que era renovável, e sempre foi tendo feedback positivo da chefia. Um ano depois, descobriu que estava grávida. Ficou, tal como o seu companheiro, muito feliz com a notícia. “Era uma gravidez planeada e muito desejada”. Não contou logo aos superiores, porque ainda era muito cedo, e quando estava prestes a terminar mais um contrato e foi marcar férias, responderam-lhe que tudo apontava para uma renovação.

Às 8 semanas de gravidez, no dia 4 de março de 2019, começou a perder sangue e foi para o hospital com medo do que poderia ter acontecido. “O meu pior medo concretizou-se. Não havia batimento cardíaco e tudo indicava que o desenvolvimento tinha parado às 6 semanas. Saímos do hospital completamente destroçados e a questionar porque nos tinha acontecido a nós.” Os tempos que se seguiram foram muito pesados física e psicologicamente. Conseguir a baixa foi complicado — no centro de saúde disseram-lhe que tinha de ir à segurança social; na segurança social, disseram-lhe que a declaração da médica não era suficiente. No centro de saúde, disse à médica que o ideal seria ficar de baixa por 30 dias, ao que a profissional de saúde responde: “para isso nem era preciso baixa, quanto mais 30 dias, mas vá lá”. 

Quando ligou para o supermercado a informar, perguntaram-lhe quando ia voltar e mostraram-se distantes. Durante a baixa, teve de regressar ao hospital porque a expulsão do material embrionário não foi completa. Fez 4 rondas de Misoprostol e, exatamente um mês depois dos primeiros sinais de aborto, a 4 de abril, deu entrada no hospital para fazer uma curetagem. “O procedimento foi bem sucedido mas como a minha baixa estava a acabar deram-me mais 2 semanas para recuperar. Durante essas duas semanas, recebi a carta a informar-me de que não me iriam renovar o contrato, apesar do que foi dito anteriormente. Depois de receber a carta, liguei perguntar o que é que eu tinha de fazer para não ter de ir mais trabalhar, faltavam 2 semanas e tinha ainda férias para gozar. Informaram-me que se não fosse seria considerado faltas e que dessa forma nunca mais poderia trabalhar no grupo dessa cadeia de supermercados”.

“Ainda não me sentia preparada para estar na caixa de supermercado a atender clientes e fingir que estava tudo bem. Quando fui entregar a farda e tratar dos últimos papéis, recebi avaliação escrita, que era negativa. Dizia que eu não era independente no meu trabalho e que não tinha os meus colegas em consideração — coisas que nunca me foram ditas em feedbacks verbais, pelo contrário. Fiquei muito revoltada com a situação mas na altura não fiz mais nada e tentei esquecer o assunto”. 

Não foi caso único. Também Rita recebeu uma carta de não-renovação quando estava de baixa médica prolongada porque acabou por abortar. Maria não passou pelo mesmo, nem assistiu a um despedimento exatamente com os mesmos contornos, mas não esquece a frase que a chefia proferiu quando uma colega e grande amiga contou que estava grávida: “sobre a gravidez? Só me interessa se me disseres que perdeste o bebé e vais continuar a trabalhar”.

Beatriz acabou por conseguir arranjar um novo emprego numa loja de um centro comercial. Conseguiu engravidar antes do primeiro confinamento obrigatório e teve tudo a que tinha direito. “Estive um total de dezanove meses fora da loja, de baixa e de licença e fui recebida de braços abertos quando voltei. Passaram-me a efetiva um mês depois de voltar”.

Há trabalhadoras que não apresentam uma queixa formal com medo de sofrer represálias

Uma lei que protege não gera empresas protetoras

Joana Pinto Coelho afirma que “não existe empresa nenhuma que assuma naturalmente que pratica descriminações, ou que utiliza práticas descriminatórias em razão da maternidade, ou em função do sexo”. A lei, tal qual está redigida, protege os despedimentos motivados pela maternidade ou paternidade, mas não muda a cultura do trabalho e as mentalidades. “Parte muito da cultura do trabalhador, da trabalhadora, do trabalho, e daquilo que nós entendemos como sendo um trabalhador produtivo, porque temos sempre a imagem do trabalhador que é uma imagem masculina. Isto, como outras circunstâncias, penaliza muito as mulheres”, contextualiza a jurista.

Aponta a década de 70, com o fim da ditadura e a entrada de mulheres no mercado de trabalho, como um momento de viragem. Mas a entrada das mulheres para o mercado de trabalho não significou necessariamente que deixassem de fazer a dupla jornada que Joana Pinto Coelho vai referindo. “Além de trabalharem fora de casa mantêm a realização das tarefas domésticas que passa por ser quase exclusivamente uma carga feminina, Mulheres a trabalhar fora de casa, mulheres a trabalhar dentro de casa, e ambas — a fazer surgir necessidade de conciliação entre estes dois mundos”. 

O mercado de trabalho continua a ser “muito masculinizado” e espera-se uma dedicação total, que não implique dividir tempo com trabalho não remunerado e os filhos. Com a glorificação de estar ocupado com tarefas do emprego, a gestão fica difícil e quem não tem disponibilidade para acompanhar o pensamento de dedicação a qualquer dia, a qualquer hora — para “vestir a camisola” — vai ficando mal visto. Em maior parte dos casos, mal vista. Seja porque precisam de repouso ou porque querem, e precisam, da flexibilidade de horário para amamentação. Algumas clientes dizem a Joana Pinto Coelho que não querem criar “problemas à empresa” e chegam a questionar até quando poderão amamentar não por sua vontade, mas para não prejudicar a empresa. 

“Isto cria de tal forma pressão que grande parte das mulheres sente um peso gigante quando a criança é amamentada para lá dos 24 meses”, explica. Quando, na verdade, a Organização Mundial de Saúde recomenda o aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida e até aos dois anos ou mais, acompanhado de alimentos sólidos. 

Para que os números de despedimentos ou assédio laboral em razão da maternidade possam descer, a jurista acredita que são precisas mudanças estruturais que passam por pensar o que fazer nestas situações. Prever e saber responder, para que não se use o despedimento como resposta a um período que a empresa vê como sendo problemático na sua gestão. 

Muitas vezes, essa sensação de que um problema se aproxima, e a falta de conhecimento sobre o processo de ter filhos, cria constrangimentos quando a gravidez ainda é um plano que se quer pôr em prática. Joana Pinto Coelho recorda o caso de uma trabalhadora que ia iniciar os seus tratamentos de procriação medicamente assistida e que, segundo a lei, tinha as faltas justificadas e pagas. A empresa informou que pagaria apenas 66%, quando tinha de pagar na totalidade. “Aquela mulher quer ser mãe e tem de fazer aqueles tratamentos, mas a entidade empregadora vem dizer que não pode ser. A dada altura, disseram que se todas as trabalhadoras da empresa fizerem tratamentos de procriação medicamente assistida, não teriam dinheiro para lhes pagar”.  

“Quando regressei da licença, fui esvaziada de funções”

“Já sabia que não ia estar bem num lugar em que não era bem-vinda, mas precisava mesmo de continuar a trabalhar. Não havia outra hipótese”. Isabel conversou com o Gerador no final do trabalho, antes de ir para casa ter com a filha. Através de uma videochamada regressou a um passado que ainda dói, e que não é tão distante assim. É um passado que ainda está muito presente. “Fui despedida grávida. No entanto, entrei com uma ação judicial e ganhei, fui reintegrada no posto de trabalho após a minha licença de maternidade. O que eu não sabia era o que aí vinha. Horário flexível recusado, ilegalmente — mais uma luta na justiça”.

O horário flexível é um assunto recorrente lá no trabalho. Dizem-lhe que quando a filha tiver um ano vai ser mais independente e que já não vai precisar de horário flexível. Isabel, que tem 27 anos e é do distrito de Aveiro, sente que é constantemente penalizada por simplesmente reivindicar os seus direitos. “Eles não querem que eu seja o mote para os outros colegas que são pais ou mães queiram ter os mesmos direitos”, explica. E desde que comunicou a sua gravidez, ficou com uma certeza: as coisas não iam voltar a ser o que eram. A gravidez foi “muito sofrida” por “não saber o dia de amanhã”, e todo o processo de maternidade tem sido sinuoso. Não na sua relação com a filha, que não permitiu que saísse prejudicada, mas na relação com o mundo exterior e, sobretudo, o trabalho. “Também custa ser forte o tempo todo”, desabafa. 

Com a chegada da pandemia, os despedimentos por gravidez aumentaram, mas ficaram também mais fáceis de mascarar. No caso de muitas das mulheres que aqui partilham as suas histórias, motivos como a falta de dinheiro ou a extinção do posto de trabalho foram os mais utilizados. Mesmo que depois se viesse a comprovar o contrário. Com Matilde, não chegou a haver um despedimento. “Houve pressão para ser eu a abandonar a instituição”, conta. “Quando regressei de licença fui esvaziada de funções, foi-me dito que não tinham gostado que tivesse engravidado durante a pandemia. Durante seis meses, foi um desprezo total. No dia em que informei que ia voltar ao horário normal, fui informada de que me iam retirar a isenção de horário. Disseram-me mesmo: ‘tenho que pensar o que vou fazer contigo’.” Conseguiram o que queriam: Matilde acabou por se despedir da empresa em que trabalhou durante sete anos por não aguentar a pressão. 

No distrito do Porto, Sofia trabalhava para uma empresa estrangeira com sede em Portugal. Quando foi contratada já tinha uma filha pequena e nunca foram postos entraves à sua progressão de carreira, muito pelo contrário. À medida que lhe iam dando mais responsabilidade, essa possibilidade já se aproximava de uma certeza. Chegaram a dizer-lhe que tinha tudo o que era preciso para liderar uma equipa. Na verdade, liderava informalmente uma equipa que foi criada com o seu apoio, no departamento em que trabalhava. Tinha 34 anos quando descobriu que estava grávida pela segunda vez, e pouco depois teve de pedir baixa. Mas não parecia haver problema; quando regressasse, a progressão de carreira estaria ainda mais próxima. 

Quando regressou da baixa, percebeu que acabaram por promover outra pessoa para o lugar de liderança que há muito assumia com naturalidade, já que tinha sido uma das responsáveis não só por criar, mas também por formar a equipa. Tiraram o seu nome das iniciativas para a quais estava escalada, e que a entusiasmavam. “Senti que desiludi as pessoas da empresa por ter engravidado”. Mostrou o seu descontentamento à equipa de Recursos Humanos, que lhe disse que o seu posto de trabalho estaria à sua espera quando regressasse da licença de maternidade, para a qual iria em breve.

Agora que regressou, sente-se subvalorizada, subaproveitada, esquecida. Ou muda de departamento ou de empresa, mas sente-se muito desmotivada. “É tão limitador quando te tiram responsabilidades e não te dizem a verdadeira justificação”, diz Sofia por videochamada, com a filha ao colo. Uma vez, num encontro virtual da empresa, a filha apareceu da mesma forma no seu quadrado de Zoom. Disseram-lhe que era pouco profissional — percebeu que ser mãe e ser trabalhadora era incompatível no seu lugar de trabalho. Continua à procura de uma oportunidade num lugar em que possa ser ela mesma em todas as frentes. Mãe, trabalhadora, mulher. 

A dispensa para amamentação pode ser gozada em dois momentos distintos do dia e tem a duração máxima de uma hora. Há empresas que não a reconhecem a trabalhadoras que não podem dar de mamar

A poucos quilómetros da casa de Sofia vive Joana. Têm a mesma idade. As suas histórias mostram como nem sempre é preciso um despedimento formal para que se sintam incompreendidas por estarem grávidas. Mas, acima de tudo, para que sintam que já não são úteis. Joana tem tido muitos problemas com a entidade patronal por causa do horário de amamentação e das baixas de assistência a família. Não tem uma rede de apoio na cidade em que vive, de onde não é natural, e tem de assumir quase todas as responsabilidades relacionadas com o filho. Idas ao médico, períodos de férias do infantário, tudo o que implique ter de ir com o filho a algum lado ou ficar com ele em casa. 

É recepcionista na área da hotelaria, trabalha por turnos. Está constantemente a ser repreendida no trabalho por ter pedido a redução de horário para acompanhar o filho que fez um ano há dois meses. “Passei de funcionária eficiente a funcionária medíocre”. Quando o filho fica doente, perguntam-lhe se vai pôr baixa. Sempre que entrega um novo atestado de amamentação — que tem de ser apresentado mensalmente —, perguntam se tenciona amamentar até à escola primária. 

“Só quero trabalhar com aquilo a que tenho direito sem me sentir culpada. Eu sinto-me culpada por ser mãe”, desabafa Joana. “Sinto-me pressionada a ter que ser trabalhadora em vez de ser mãe. Neste momento, sou definida por ser mãe. Não posso fazer isto porque sou mãe, tenho de fazer aquilo porque sou mãe. Só quero poder ser tudo ao mesmo tempo.”

Texto de Carolina Franco
Ilustrações de Marina Mota

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