*Esta é uma crónica da Marta Crawford, inicialmente publicada na Revista Gerador 36.
Na sequência dos recentes acontecimentos no Afeganistão, decidi apoiar. Nunca me tinha envolvido desta forma numa situação de emergência humanitária, apesar de já ter participado em muitas outras causas de forma ativa. Mas esta, em particular, tem ocupado boa parte do meu espaço mental. A situação no Afeganistão é tenebrosa. Os relatos são muito piores do que possamos imaginar e as séries de ficção, como a Segurança Nacional, ficam bastante aquém da realidade.
Em agosto passado, fui entrevistada para o projeto Womanity.world, criado por Alexandra Quadros. Quando aceitei, mal sabia que essa minha participação seria o embrião de tudo o que se passou a seguir. Em setembro, a Alex voltou a desafiar as mulheres que já tinham participado noutras edições para um contributo especial em torno da palavra FREEDOM, a propósito da situação que se estava a viver no Afeganistão.
Os relatos que nos chegavam sobre a forma como as mulheres começavam a ser tratadas e perseguidas provocavam-me náuseas. Sentia que tinha que atuar, mas não sabia como. Comecei a partilhar quase todos os dias informação sobre os vários tipos de ajuda possível a estas mulheres. Quando a edição de setembro da Womanity ficou disponível online, entre vários contributos, era possível ouvir a entrevista feita pela Alex a Nilofar Ayoubi, uma afegã, e a Laia Marsal Ferret, a catalã que a tinha ajudado a fugir de Cabul. Laia dizia, com simplicidade, que era uma rapariga normal, que tinha decidido responder ao apelo de Nilofar através do Twitter e que decidiu ajudá-la. Sem saber bem como, conseguiu criar uma rede de contactos que a ajudassem a retirar aquela mulher de Cabul e a partir daí, tantas outras.
Aquela entrevista teve impacto em mim e, por isso, perguntei-lhe o que poderia fazer para ajudar. Minutos depois, estava a receber um dossiê de várias mulheres perseguidas pelos talibãs e em risco de morte, acompanhado de fotografias, passaportes, certificados, fichas médicas, relatórios escritos pelas próprias sobre a sua vida e a razão pela qual precisam de fugir do seu país.
Depois de se conhecer caras e nomes, é difícil ficar indiferente. Comecei por fazer perguntas a todos aqueles que achei que me podiam ajudar nesta missão. Fui obtendo informações e percebi que os passos prioritários passavam por enviar toda a informação para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para as embaixadas portuguesas nos países envolvidos e para organizações internacionais a trabalhar com refugiados, nesses locais. O tempo, nestas situações, não se coaduna com o tempo das instituições do Estado ou mesmo com o das organizações que estão no terreno.
Emails enviados. Era preciso esperar pelas respostas. A primeira resposta foi do cônsul da embaixada portuguesa no Irão, que teve a amabilidade de me responder no sábado. Indicou-me as organizações internacionais que poderiam ajudar Marmar – a rapariga afegã que tinha conseguido fugir para o Irão.
As respostas aos emails são preciosas porque ficamos com a certeza de que no lado de lá alguém recebe a informação, alguém se importa. Percebi também que uma embaixada, sem luz verde do seu país, não tem capacidade para ajudar cidadãos, mesmo alguém que possa estar numa situação de vulnerabilidade.
A emergência de tirar Marmar do Irão prende-se com o facto de o seu visto no Irão caducar no início do novembro. Sem um novo visto, é deportada para o Afeganistão, onde o seu destino é previsível. Por outro lado, uma mulher sozinha no Irão, e na rua, vale pouco. O desespero de Marmar fez-me perder o pudor em pedir ajuda a quem me pudesse ser útil nesta demanda. E tal como uma aranha constrói a sua teia, também eu comecei a construir a minha. Infelizmente, no caso de Marmar, a rede não funcionou localmente e ela foi atacada dias depois, no país que a acolheu. E foi nesse momento que eu e a Cláudia Silva, que passou a fazer parte desta rede, tivemos a ideia brilhante de lhe comprar um bilhete de comboio para Teerão e fazer um booking num hotel. Simples, dirão. Sim, mas podíamos ter pensado nisso mais cedo. Booking internacional para as duas situações e voilá: Marmar no hotel, segura e longe de mãos impróprias. Mesmo que o bilhete de comboio nunca tenha chegado, Marmar continua no hotel à espera do seu visto e nós continuamos a lutar pelo seu visto todos os dias.
Numa situação de emergência, tornamo-nos obsessivos, porque queremos respostas e soluções urgentes. A obsessão, como podem calcular, promove ansiedades e angústias e não nos deixa dormir com tranquilidade. Invade todos os aspetos da nossa vida e, é por isso, que é preciso saber mediar o nosso envolvimento emocional nestas situações. A racionalidade é importante. Só assim conseguimos ajudar os outros e manter a nossa própria sanidade mental e decidir o melhor caminho a seguir.
Sei bem que não conseguimos salvar todas. Salvar Marmar é a minha maior prioridade neste momento. Enquanto esperamos por luz verde, as palavras escritas aqui são o melhor ansiolítico. Dando o nosso melhor, recebemos sempre a dobrar e é por isso que partilho aqui o poema que recebi hoje de Marmar – a minha querida rapariga afegã.
I find myself awake*
I find myself dreaming
A girl wandering barefoot
I see people in the streets
The coffins are carried to the unknown cemetery
From the coffins the dead cry
Take us home
We are alive
It seems
Those idiots
He is deaf and dumb
I see myself in a dream
She is a girl
With long hair
With beautiful eyes
She is sitting at a table
And write down her dreams for tomorrow
I dream of myself again
She is a barefoot girl
Wandering in the alleys
See a mother
That shout
hits
My daughter comes home
The alley is not a safe place
The devil came to earth
It might hit your head
Maybe he will stone you
I find myself awake
Under the feet
I was a woman
They whip me
One
No
Thousand
Marmar Ahmadi
Nota: O poema foi escrito em persa e traduzido pela autora através de tradutor automático, que nem sempre respeita a essência do que é dito.
-Sobre a Marta Crawford-
É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem Tabus, Viver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.