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Psiquiatria Lenta: Algures entre o Caos e a Rigidez

Na crónica Psiquiatria Lenta deste mês, João G. Pereira fala-nos da premência de uma revolução nos serviços de Saúde Mental.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de João G. Pereira

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A Comunidade Terapêutica Democrática, nas suas várias vertentes, é um dos contextos onde a Psiquiatria Lenta pode ser aplicada e desenvolvida. Tenho tido o privilégio de dirigir uma destas comunidades ao longo dos último dez anos e também de aconselhar e supervisionar colegas de outras comunidades espalhadas pelo Mundo.

Numa comunidade deste género ou, se quisermos, em qualquer serviço de saúde mental, desenvolve-se uma cultura própria, mais ou menos saudável. Pode mesmo dizer-se que, em qualquer destes locais, se desenvolve uma atmosfera e uma mentalidade específicas. Da mesma forma que a mente individual, esta cultura/mentalidade/atmosfera funciona no seu melhor quando, tal como um rio, o seu fluxo e energia correm por entre as margens sem as transporem.

Quando se sente o caos a instalar-se, introduz-se alguma estrutura. Por outro lado, quando se nota rigidez, é importante trazer flexibilidade. É no equilíbrio entre a flexibilidade e a estrutura que se encontra a saúde mental, individual e das organizações.

Poderíamos pensar que no extremo do caos está a loucura (muitas vezes chamada de psicose) e que no extremo da rigidez estão as obsessões, compulsões e rituais. Mas se o caos e a loucura crescem numa comunidade terapêutica ou noutra organização, devemos escutá-los, entrar em diálogo e entender de onde vêm e qual a mensagem que nos trazem. Muitas vezes, nas comunidades e serviços que conheço, são sinais de que o staff perdeu a capacidade compassiva e empática, descurando regras fundamentais e estruturantes que mantêm o fluxo da água contida e segura entre as margens. Uma vez dada voz à loucura dentro das estruturas restabelecidas, é possível notar um crescendo gradual de harmonia e um sentido de pertença, de comunidade, a regressar.

Existem variadas razões para o staff perder esta capacidade de contenção e de escuta embora, frequentemente, se prenda com defesas próprias contra a intensidade relacional que se pode gerar num ambiente desta natureza ou, não menos frequente, a interiorização irrefletida das inseguranças e ansiedades de outros membros da comunidade.

A intervisão é um espaço de desenvolvimento pessoal onde o staff pode reflectir e reconhecer os aspectos que podem estar a interferir com o trabalho clínico. No sistema do Diálogo Aberto que utilizamos o staff não fala sobre as pessoas que ajuda sem estas estarem presentes, pelo que a intervisão se foca no desenvolvimento pessoal e do grupo.

Tal como com os indivíduos, o trauma desempenha nestas comunidades e serviços, um papel preponderante. O que é verdadeiramente traumático não é tanto o que acontece, mas sim a forma como se lida com o acontecimento. A ausência de um Outro compassivo e empático que possa acompanhar as nossas vivências e emoções é uma fonte importante de trauma e de desintegração interna, podendo levar ao caos ou à rigidez, ou a ambos.

Um dos problemas do sistema tradicional de cuidados em saúde mental é que a maioria destes aspectos são descurados ou relegados para segundo plano, colocando o foco nos sintomas, nos diagnósticos e nos tratamentos rápidos, com base em psicofármacos e consultas de 20 minutos. A atmosfera geral não é de compaixão e empatia, nem de autocuidado, baseia-se em sistemas de causalidade linear, hierarquizados e com relações de poder que representam, muitas vezes, ameaças para as pessoas que utilizam os serviços.

A Organização Mundial de Saúde e as Nações Unidas disseram em 1953 e em 2017 algo muito semelhante, com quase 70 anos de distância. Em 1953, o 3º relatório do comité especialista em saúde mental referia que “o factor mais importante para a  eficácia do tratamento em qualquer hospital psiquiátrico parece ser um elemento intangível que pode apenas ser descrito como a sua atmosfera. (…) quanto mais o hospital psiquiátrico imita o hospital geral (…) menos bem sucedido será em criar a atmosfera necessária. Demasiados hospitais psiquiátricos dão a impressão de serem um compromisso desagradável entre um hospital geral e uma prisão, quando, de facto, o papel que têm a desempenhar é diferente de qualquer um deles; é o de uma comunidade terapêutica”.

Em 2017 o relator especial das Nações Unidas para a saúde afirmou que o mundo precisava de uma revolução na saúde mental, solicitando aos Estados membros para abandonarem as práticas e pensamento tradicionais, permitindo uma mudança já muita atrasada para uma abordagem baseada nos direitos. Acrescentou ainda que “os serviços de saúde mental estão em crise – não uma crise de desequilíbrios químicos, mas de desequilíbrios de poder (…). Existe agora evidência inequívoca sobre as falhas de um sistema que se baseia demasiado no modelo biomédico da saúde mental, incluindo o uso na linha da frente e excessivo de medicamentos psicotrópicos”.

Apesar das vozes influentes, apesar dos milhares de estudos sobre a relação terapêutica, sobre o trauma e sobre a empatia, para nomear apenas alguns pontos, o sistema tradicional persiste e não dá sinais de mudança parecendo, também ele, entre a obsessão e a loucura, entre o caos e a rigidez.

- Sobre João G. Pereira -

João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.

Texto de João G. Pereira
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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