Descartes veio introduzir no pensamento ocidental um dualismo que ainda hoje perdura em muitos aspectos da medicina e do pensamento científico em geral. Desde essa época que existe uma forte tendência em separar o físico do mental, o racional do emocional. O avanço do conhecimento científico parece ter dado razão a Descartes em algumas ocasiões, embora uma análise mais atenta e cuidada venha desconfirmar essa tendência. Por exemplo, tem vindo a ser possível descobrir zonas do cérebro mais ocupadas com a consciência ou o processamento de informação explicita (linguagem), especialmente concentradas no hemisfério esquerdo, e zonas mais ocupadas com as emoções e o processamento implícito de informação (intuição, imagens), situadas maioritariamente no hemisfério direito. Contudo, nenhuma destas regiões trabalha separadamente, existem trocas mútuas e recíprocas de um lado para o outro, com especial enfoque na chamada “ponte” entre os hemisférios, região com o nome técnico de corpo caloso. Esta ponte é essencial em situações traumáticas, onde as memórias de emoções negativas (cérebro direito e amígdala) estão associadas a uma narrativa verbal e a uma história (cérebro esquerdo). É frequente, no trauma, haver falhas importantes na região do corpo caloso e do hipocampo, não permitindo uma ligação eficaz entre os dois lados cerebrais e impedindo que as memórias afectivas possam ser alteradas através da construção de novas narrativas e significados.
A separação entre o físico e o mental é, na mesma ordem de ideias, apenas ilusória. Tudo o que é mental tem repercussões físicas, e tudo o que é físico altera ou influencia o estado mental. Há estudos que mostram uma associação clara entre experiências emocionalmente difíceis na infância, ao nível do abuso, da violência ou da exposição repetida ao stress, e o desenvolvimento posterior de certos tipos de cancro, doenças autoimunes, doenças cardiovasculares, fibromialgia, artrite reumatoide, esclerose múltipla e fadiga crónica, para nomear apenas alguns exemplos. A evidência científica parece indicar inequivocamente a ligação entre ambientes de privação, stress e violência na infância e doenças de todo o género na idade adulta, umas de índole mais “físico” e outras comummente chamadas de “mentais”. Numa relação inversa, sabemos há muitos anos que ambientes afectivamente ricos e seguros na primeira infância resultam numa capacidade aumentada de regular emoções na idade adulta e de lidar com a vulnerabilidade.
Podemos ir ainda mais longe se pensarmos que aquilo a que chamamos mente não corresponde apenas ao que é produzido na cabeça e no cérebro. A mente é criada por todo o corpo, há inclusive redes neuronais muito significativas na região intestinal e na região do coração, redes que alguns autores já apelidaram de 2º e 3º cérebros. Para além do envolvimento do corpo como um todo, a mente é também fruto da relação com o meio físico e social, é nesse espaço relacional que a nossa mente existe e se recria a todo o momento.
Entender o impacto que as experiências infantis têm na morfologia e desenvolvimento do cérebro e, consequentemente, o impacto que estas alterações vão ter nos comportamentos futuros é, então, fundamental. O trauma é transmitido de geração em geração por hereditariedade psicológica. Se um pai ou uma mãe têm a mente demasiado ocupada por experiências traumáticas, vai ser difícil estarem emocionalmente presentes para o bebé, mentalizarem o seu estado afectivo e ajudarem o bebé a perceber as suas próprias emoções. Se o bebé não aprende a reconhecer (mentalizar) as suas emoções irá ter dificuldades, mais tarde, em regular-se em situações de carga afectiva forte. Mais problemático ainda poderá ser quando o próprio trauma parental é agido na presença do bebé, activando de forma demasiado regular o eixo de regulação do stress, hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA). Estas dificuldades em mentalizar ou interpretar situações sociais, a par com a activação do eixo de regulação do stress, são acompanhadas de alterações hormonais, por exemplo redução de oxitocina, e de alterações ao nível dos neurotransmissores, por exemplo, nos circuitos dopaminérgicos. Entre outras consequências, estas alterações poderão potenciar a diminuição de empatia e o aumento da desconfiança e hipervigilância. Certas regiões cerebrais como a amígdala, situada no protegido sistema límbico, poderão também desenvolver uma hiperactividade, levando a que pessoas com exposição ao trauma tenham uma maior propensão para estados de alerta e ansiedade.
É importante não olhar para estas alterações neurobiológicas como estragos ou doenças mas sim como adaptações necessárias a um ambiente que era, na época, ameaçador. Pode acontecer, todavia, que estas alterações se tornem “desadaptativas” mais tarde na vida, sendo habitualmente este o momento onde é procurada a ajuda profissional. Parece evidente, contudo, que esta ajuda não pode ser uma repetição das sensações infantis de negligência, abandono e abuso, como muitas vezes acontece nos sistemas tradicionais de cuidados. Nem uma mera prescrição de psicofármacos. É preciso cultivar, talvez pela primeira vez, um ambiente relacional seguro, acolhedor e de confiança para que a mudança possa ser comtemplada. Foi em-relação que os problemas surgiram, e é em-relação que terão de ser reparados. É esta a enorme tarefa e responsabilidade de uma psiquiatria lenta, compassiva e empática.
- Sobre João G. Pereira -
João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.