Sem «pasta» não há comida. Nem comida, nem cozinha, nem fogão, nem gás, nem eletricidade. Esta «pasta», sinónimo calina de dinheiro, faz rodar o mundo. E também o mundo da cozinha e dos gourmets, dos chefes, dos sommeliers e de outras pessoas que se movimentam nas proximidades.
Todavia, a «pasta», na gastronomia, não tem esse significado. O circunspecto Merriam-Webster define «pasta» no sentido que desejamos: «um tipo de alimento que resulta da mistura de farinha, água e, por vezes, ovos, que se apresenta sob múltiplas formas (tubos, conchas, fitas, etc.) e que é, por norma, cozido em água a ferver».
Todos sabemos que a origem da «pasta» é italiana? Não é cem por cento garantido. A primeira referência histórica em Itália vem do século XII, e é siciliana. Mas, antes disso, já os chineses trabalhavam os seus noodles desde 900 a. C.
As chamadas «pastas frescas», feitas de raiz nas nossas cozinhas, têm pouca aceitação em Portugal. Não pela qualidade, que deve ser melhor do que a que se consegue com pasta seca (a dos pacotes), mas sim pelo tempo que leva a fazer e pela falta de tradição que faça passar esta habilidade de pais para filhos aqui no burgo.
De facto, várias pesquisas de mercado (uma até foi conduzida por mim, na minha outra vida de professor universitário) apontam para que a grande adesão dos consumidores à utilização da «pasta» no nosso país seja devida à rapidez e à facilidade da confeção.
Meio caminho andado para se tornar um «prato de refúgio» para solteirões, recém-casados, famílias em que todos trabalham e semelhantes tipologias de clientes que prezam ocupar o tempo em casa com outras coisas do que a dedicação à cozinha.
Cozinhar pode ser engraçado e tornar-se numa ocupação familiar onde todos podem participar. Mas concordo que, no dia a dia semanal, na azáfama em que todos os minutos contam, esta ocupação perde muito do seu encanto.
Daí os pratos de pasta: Panela grande ao lume, deixar ferver com sal, enfiem-lhe o spaghetti partido ao meio para dentro, mexam com um garfo grande para desembaraçar, esperem 11 minutos e tirem, secando a pasta num escorredor. Passem por uma frigideira funda com um fio de azeite, juntem um molho já feito e está tudo à mesa em 20 minutos.
Utilizem sempre pasta de trigo duro (Triticum durum), que é a mais adequada para que em cozendo fique al dente, isto é, cozida mas estaladiça.
Obviamente que qualquer mãe de família de Nápoles que me leia (serão poucas…) imediatamente encomendará o meu «despacho» a alguém desse ofício. A «pasta» não se reduz ao esparguete. As formas de a confecionar podem ser elaboradíssimas, a utilização de pasta seca é desdenhada pelos puristas e por aí fora. Seria um nunca mais acabar de críticas e de impropérios, inteiramente merecidos.
Mercê divina, bem parte de minha casa – a uns cem metros – ali no Estoril velho, existe uma casinha onde oficia a mestra Romina Lamassa (nome de família!) e onde podemos ter um vislumbre deste universo e da qualidade que dele pode emergir, em havendo sabedoria e arte.
Para não me ir embora ferido de morte com a mesquinhez do desenvolvimento que dei a este antiquíssimo alimento – ao mesmo tempo que cubro o mote meio maroto desta Revista Gerador –, deixo aqui a famosa receita do «Spaghetti à la Puttanesca».
Segundo a lenda, era a comida favorita da maioria das raparigas «trabalhadoras da noite» de Nápoles, no virar do século XIX. A verdade parece ser mais comezinha… Tratar-se-ia de um prato feito à pressa por Sandro Petti, em Ischia, no seu famoso restaurante do jet set, Rancio Felloni, no dealbar dos anos 60.
A história contada pelo próprio tem que ver com a necessidade de satisfazer um grupo de amigos chegados fora de horas ao restaurante, gente da «alta», numa altura em que a cozinha já teria encerrado. Já sem cozinheiro para trabalhar, Sandro «inventou» este spaghetti, que foi depois adequadamente batizado pela alegre companhia. Alegre em mais do que um sentido…
Spaghetti à La Puttanesca (para amadores)
Precisamos de dentes de alho, azeitonas em rodelas, tomate pelado de boa proveniência, anchovas de lata, cogumelos de lata, orégãos e malagueta. Bom azeite e um pacote de esparguete de trigo duro. Um bocado de presunto que se cortará à espanhola, em troços.
Descascamos os dentes de alho e picamos finamente. Escorremos as anchovas e cortamos o presunto em pequenos pedaços.
Levamos ao lume um tacho com água, sal e deixamos ferver. Junta-se o esparguete, mexe-se e deixamos cozer durante cerca de 11minutos, depois escorra-se.
Pomos a fritar o azeite com os dentes de alho e o presunto, deixando cozinhar até ficarem dourados. Adicionamos o tomate pelado picado, mexemos e deixa-se cozinhar durante cerca de 5 minutos.
Acrescentam-se as anchovas ligeiramente desfeitas, as azeitonas, os cogumelos escorridos e misturamos. Verifica-se o sal, juntamos a malagueta desfeita e os orégãos. Por fim, adiciona-se o esparguete, mistura-se bem e servimos.
Podem comer, senhoras e senhores de todas as idades e crenças, desde que gostem de comida apimentada a gosto.
Para que a coisa resulte bem não é necessário alguma ou algum dos comensais exercer a antiga profissão que dá o nome ao prato. Mas que teria alguma graça, isso teria.
- Sobre Manuel Luar -
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.