A propósito do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade proliferaram os comentários de ensaístas e poetas tentando explicar uma certa perda de consagração e de receção da obra do trovador portuense. Imagens datadas (branco, cal, muros, flancos, luz…), dizem uns. Versos que se transformaram em lugares-comuns, pela sua difusão ampla, dizem outros. Poesia sem envergadura intelectual, acrescentam ainda. Eu pasmo, porque a poesia de Eugénio continua a resplandecer, mesmo que os salões já não a convidem.
Se há algo que me irrita em muita da poesia contemporânea é, por um lado, o seu solipsismo e, por outro, a sua transformação em puro conceito.
Na primeira situação, os poemas remetem tanto para as indecifráveis entranhas das íntimas experiências que nada mais reverberam a não ser o metabolismo das digestões narcísicas. Se a experiência subjetiva descola da experiência intersubjetiva, (comunicativa e social, por natureza), torna-se uma cápsula à espera de decifração e o poeta só pode ter gozo por saber que ninguém verdadeiramente o compreende, que a sua obra é um enigma para a eternidade e a sua singularidade uma estátua de indestrutível mármore. Essa é uma poesia que desiste de compreender o mundo e de quão coletiva e transferível pode ser uma existência.
Se, como no segundo caso, a poesia é apenas uma ideia, então o poeta especializa-se na metalinguagem e os seus versos são belas arquiteturas formais que se limitam a pensar na poesia como arte, com A maiúsculo, como ideia de si mesma, puramente imanente, jogo intelectual de infinitos espelhos e pregas.
Sei bem que a poesia não é a vida, mas sim uma representação que a inclui e transfigura. O poeta é um fingidor…Mas, enquanto mediação, algo permanece enraizado na experiência do mundo que o poeta partilha através do seu universo imagético, tornado acessível à fruição de outrem, que se deixa levar.
Lamento, mas eu preciso de uma poesia que me toque, que me arda, que ressoe neste corpo, que reverbere a vida, nas suas múltiplas declinações, que se impregne do quotidiano, do trivial, do insensato, da paixão que muda a nossa perceção da existência com os outros. Não tem de ser especialmente bela ou grandiosa; não precisa de um sustentáculo imponente de teorias da arte e da linguagem; não tem de se morder a si mesma como um vício; não tem de se amparar, desvalida, na interioridade desgastada do poeta; não tem de ser panfletária, imediata, fácil, necessária e diretamente política ou interventiva. Mas que, modesta, transporte o poder de me fazer sentir parte deste mundo e em casa neste mundo, como dizia Hegel; que me estremeça, às vezes, que me faça viajante, ainda que a partir do lugar-comum, do pão nosso – circulante, partilhado, alimentício, iluminado. Que me permita, enfim, colher todo o oiro do dia, sem tédio e com renovado espanto.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.