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Valério Romão

“Uma pequena história para adultos ingénuos” Obra literária de Valério Romão, originalmente publicada na Revista…

Texto de Gerador

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"Uma pequena história para adultos ingénuos"

Obra literária de Valério Romão, originalmente publicada na Revista Gerador 30.

Quando os turistas começaram a passear pela rua onde o Sr. Carlos tinha uma pequena pastelaria e, por cima desta, a sua casa, o Sr. Carlos não pode evitar um pequeno frémito de contentamento. Há muito que aquela zona da cidade, pobre e, a espaços, mal frequentada, não despertava o interesse de ninguém. As pessoas que lá moravam eram praticamente as mesmas há mais de trinta anos. Eram velhos. Não havia miúdos, não havia jovens. Aquela rua em Lisboa mais parecia um enclave geriátrico, uma aldeia em processo acelerado de desertificação. 

Uma pastelaria (a do Sr. Carlos), um minimercado, uma loja de conveniência e um restaurante onde a ementa não variava desde que abrira compunham a totalidade das lojas naquela rua. Tudo abria muito cedo e fechava muito cedo. Até a loja de conveniência, que tinha exactamente o mesmo horário do minimercado, o que fazia com que os donos de ambas as lojas se evitassem na rua. Quando os turistas começaram a aparecer, porém, o azedume de sempre foi posto de parte. Eram tantos os clientes a comprar tudo e mais alguma coisa sem reclamar do preço que os donos do minimercado e da loja de conveniência se viam sem mãos a medir. 

Ao Sr. Carlos não lhe interessava tanto o dinheiro como sentir que aquela gente jovem e de sorriso generoso ia polvilhando de optimismo os sítios por onde passava e as pessoas com quem se cruzava. Pelo que quando os turistas lhe começaram a perguntar se havia casas desocupadas para arrendar por ali o Sr. Carlos foi lesto a vestir a camisola de agente imobiliário. Falou com quem tinha um quarto a mais em casa e vontade de fazer algum dinheiro; falou com os herdeiros das casas entretanto deixadas ao abandono e que agora podiam render uns cobres; falou com o dono do restaurante, um tipo carrancudo mas de bolsos bem recheados.

            Ó Zé, tu com o restaurante aqui e dois andares por cima desabitados há dois anos, fazias uma pensão, nem precisavas de gastar muito dinheiro, compravas uns móveis naquele armazém onde as coisas são quase dadas e tinhas isto cheio o ano inteiro.

            E a trabalheira, pá? Tu ainda percebes inglês, mas eu não pesco nada do que os tipos falam.

            Metes uma miúda nova no café que fale inglês e não te preocupas com isso. Não estavas a precisar de mais uma pessoa para as mesas?

            Estava, por acaso estava…

Quando começaram a chegar pessoas um pouco de todo o lado à procura de espaços para abrir os mais diversos negócios, o Sr. Carlos não pôde evitar sentir que uns bons dez anos tinham sido subtraídos à idade de todos quantos moravam ali. As pessoas reaprendiam paulatina mas progressivamente o ofício do sorriso. As lojas fechavam todos os dias um pouco mais tarde. Até a Dona Amélia, que apanhava qualquer doença só de ouvir falar nela e que raramente saía da janela de onde, de braços sobre o peitoril, observava e julgava todos quanto calhassem deambular por ali, começou a aventurar-se a sair à rua novamente, debruçada sobre o andarilho e invectivando os socalcos e elevações no passeio que lhe dificultavam a marcha. 

Naquela rua surgia como que do nada uma loja de roupa para estrangeiros “muito pequenina, muito garrida, muito cara”, uma padaria alsaciana onde as pessoas falavam entre elas francês e se serviam galões cremosos com corações de canela desenhados na espuma “eu tenho vergonha de entrar ali só para beber um café, ainda por cima a euro e meio a bica”, um bar que fechava às tantas e no qual as pessoas se perfilavam, encostadas à parede da rua, com gigantescos balões na mão que mais pareciam uma salada de frutas minimalista dentro de um aquário “dizem que é gin, mas no meu tempo servia-se num copo alto com duas pedras de gelo”. 

Quando começaram a escassear as casas disponíveis para a quantidade de gente que parecia ter descoberto naquela rua o caminho, a verdade e a vida, começaram igualmente a aparecer uns tipos com uns modos muito pouco próprios a prometerem a quem quer que os ouvisse uma casa maior nos subúrbios e uma boa maquia em dinheiro a quem estivesse disposto a trocar “aquela insalubridade cinzenta por uma vida mais digna e desafogada no Prior Velho, de onde se podia ver os aviões a passar para o aeroporto”. Ao Sr. Carlos, para além de lhe cobiçarem o T2 também lhe faziam propostas pela pastelaria “isto aqui dava uma hamburgueria gourmet que você não está bem a ver”, ao que o Sr. Carlos, ainda imbuído da paciência dos principiantes, respondia:

            Deixe-se disso, homem, que não tenho precisão do dinheiro e gosto do que faço. 

Quando os vizinhos do Sr. Carlos, pressionados pelos filhos para aceitarem o dinheiro que parecia muito e afinal se revelava uma mão-cheia de coisa nenhuma (tudo apurado, noves fora nada, um carro em segunda mão, uma viagem aos Açores) começaram a mudar-se para sítios que conheciam apenas de nome, o Sr. Carlos começou a duvidar da bondade do milagre que lhes coubera em sorte. Pouco a pouco, os moradores da rua iam sendo substituídos por hordas de estrangeiros barulhentos e cronicamente embriagados que se sucediam uns aos outros cada vez mais depressa. 

Quando na sequência de duas inspecções da ASAE o Sr. Carlos se viu obrigado a aceitar o trespasse por metade do valor inicialmente proposto – a tal hamburgueria gourmet que ia vender mais que muito – por não ter como pagar as coimas resultantes das inspecções e a modernização requerida pelos inspectores, o Sr. Carlos começou a sentir um ódio a crescer-lhe no peito como não sentia desde que o obrigaram a ir para a guerra e a matar, o que se tornou possível apenas depois de começar a odiar. 

Nos meses seguintes o Sr. Carlos viu o seu mundo reduzir-se ao confinamento da pequena varanda onde passava os dias a fumar – um hábito a que regressara para tentar aplacar a ansiedade que o consumia – e a cuspir para cima dos turistas que, passando sob a sua janela e remexendo no cabelo pastoso, procuravam em vão, de cabeça torta como flamingos bêbedos, o aparelho de ar condicionado de onde teria caído aquela pequena poça de água. O Sr. Carlos sorria-lhes.

Quando os primeiros turistas apareceram mortos, ninguém se lembrou do Sr. Carlos.

Nascido em França, licenciou-se em Filosofia e tem escrito contos, peças de teatro, feito traduções e colaborado com diversos artistas nacionais. Foi selecionado como Jovem Criador nacional no início do século e tem vários livros publicados, como são exemplo a trilogia composta por Autismo, O da Joana e Cair para Dentro. Escreve regularmente para o jornal Hoje Macau.

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