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Outra Parte: Da crise na habitação

Na Outra Parte deste mês, Raquel Pedro fala-nos da crise na habitação.

Texto de Redação

Ilustração de Raquel Pedro

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Poucos ordenados chegam para viver condignamente em Lisboa, realidade que se tem aguçado nos últimos anos perante a gentrificação e especulação habitacional da capital portuguesa. O poder de compra dos emigrantes, famílias e jovens que trabalham e vivem – ou pretenderiam viver – em Lisboa, tem sido substancialmente inferiorizado face ao custo de vida, principalmente em termos de habitação. Esta situação passa cada vez menos despercebida e levou a que milhares de pessoas saíssem à rua no passado dia 1 de Abril. A manifestação não homogénea de forças sociais e políticas apresentou inúmeras soluções para a crise em que vivemos.

Este não é um problema novo e as suas diversas dimensões têm transparecido cada vez mais nos últimos anos. Apesar de ter conhecido a cidade naquela que é a sua mais recente história, sensivelmente desde 2015, noto uma considerável diferença e distância entre como era naquela altura e como está agora: as ruas, os fins-de-semanas, os restaurantes, os cafés, as lojas e, sobretudo, as populações e os turistas. As primeiras situações de que me lembro começavam a surgir junto da população mais idosa, que viveu durante uma vida em bairros como o da Mouraria e Alfama, começando a ser despejadas com a crescente valorização dos imóveis locais, a impossibilidade de atualização de rendas para valores exorbitantes e a parca solução de se re-alojarem numa zona periférica, onde possam suportar o custo de vida. Coletivos como a Habita e o Stop Despejos faziam-me chegar alguma informação, sobretudo para mobilizações imediatas contra os despejos cada vez mais recorrentes. Note-se ainda que é nesta mesma zona onde encontramos a população imigrante que vive no centro da cidade. Antigamente, apenas ouvíamos notícias que enquadravam esta zona como a mais multicultural de Lisboa, a que tornava a cidade cosmopolita (como esta). Hoje em dia, sobretudo aquando do incêndio que causou quatro mortos e várias dezenas de feridos e desalojados na Mouraria, visibilizou-se as condições desta população, que em muito contribui para o funcionamento da cidade de Lisboa. Assim, é importante pensarmos – de que vive este território? O que tem sido necessário para que se mantenha de pé? Nas mãos de quem encontramos o trabalho quotidiano? É também respondendo a estas perguntas que percebemos onde estamos socialmente situados.

A gentrificação tem consistido na repentina valorização da cidade de Lisboa como zona socioespacial, sobretudo pela enorme procura turística e consequente necessidade de alojamentos e serviços para os mesmos. Aos poucos, as necessidades de quem visita a cidade vão ganhando uma sobrevalorização, seja pelos especuladores imobiliários seja pela gestão política, deslocando o foco de para quem a cidade se dirige: à população ou aos turistas? Estes visitantes, que alegadamente trariam “riqueza” aos próprios habitantes através do dinheiro “que deixam” na zona têm materialmente levado a que a cidade seja descaracterizada, tornando periféricos e desmobilizados bairros que funcionavam comunitariamente, como os já referidos Alfama e Mouraria. Além do mais, as suas exigências têm cada vez mais sido suprimidas com base na força de trabalho de imigrantes e outros, que além das parcas condições de trabalho a que se vêem sujeitados também agora na dimensão habitacional estão em perigo – condições de trabalho muito inferiores àquelas que seriam necessárias para pagar o custo de vida na cidade. Com o passar do tempo, esta situação também leva a que ao aumento de bairros periféricos e ao aguçar da estratificação social urbanística, aumentando a desigualdade social com a segregação racial que conhecemos nos bairros sociais ou de rendas acessíveis.

Um dos flagelos que podemos notar é, desde logo, o das casas abandonadas, que existem mesmo no centro da cidade. Em 2019, um grupo de sem-abrigo e pessoas solidárias, provenientes ou não de outros coletivos da capital, ocuparam um edifício devoluto em Arroios, tornando-o na Seara -  Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara. Poucos meses depois, foram despejados a frio por uma empresa de segurança particular, numa ação de duvidosos contornos legais. Esta ação política denuncia uma realidade que em pouco muda, já que temos visto o problema a aprofundar-se: casas sem pessoas e pessoas sem casa.

O fenómeno da crise na habitação tem-se alastrado a outras cidades em Portugal, sobretudo Coimbra e Porto, além da já referida periferia que vai aumentando e criando novas camadas problemáticas. Apesar de funcionarem com diferentes dinâmicas e problemas específicos, o fundo da gentrificação e especulação é semelhante. Assim, não podemos tratar nenhum dos casos como isolados. Por sua vez, cada uma das cidades não deixa de ter os problemas específicos que a ela lhe correspondem. Assim, devemos pensar soluções que visam cidades mais inclusivas para a população local ao invés de privilegiar turistas ou até, mais recentemente, os cada vez mais conhecidos nómades digitais – para quem trabalha quem consegue pagar o custo de vida de uma cidade como Lisboa? E agora: quem queremos que possa viver condignamente em Lisboa? Bom será afirmar como este problema está conectado com os demais de foro social, tendo por isto sido colocado na prioridade da agenda feminista, anti-racista entre outros – mesmo historicamente, o direito à habitação tem sido citado sistematicamente.

Finalmente e, por outro lado, Portugal enfrenta um problema gravíssimo de desertificação naquele que é o seu interior, também ele explorado em prol da existência das cidades tais como as conhecemos. Afinal, quem e de onde se alimenta uma cidade? A relação entre o campo e a cidade não se tem inter-alimentado numa saudável co-dependência mas, sim, um assume uma dominação e exploração sobre os recursos do outro. No fundo, como mulher feminista nada mais reivindico do que aquilo que também em 1981 foi reivindicado na Figueira da Foz, durante o Congresso Unitário de Mulheres para que: “A Habitação condigna seja uma realidade;” e “A mulher digna Não ao aumento do Custo de Vida e a sua voz seja ouvida”.

-Sobre a Raquel Pedro-

Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.

Texto de Raquel Pedro
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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