Ao longo das últimas semanas, temos assistido ao polémico debate da proibição dos telemóveis nas escolas e das suas potenciais vantagens e desvantagens. Há quem alegue que a palavra “proibição” deve ser evitada, ou quem defenda que o telemóvel pode ser um instrumento útil de trabalho. Da minha parte, ainda para mais com filhos e sobrinhos em idade escolar, causa-me calafrios de angústia e de consternação ver tamanha inércia de acção e pensamento. Da parte de quem legisla (governo e assembleia da república), da parte de quem gere (as escolas) e da parte quem sofre as consequências (alunos, pais e sociedade em geral).
Prolifera a evidência sistemática e anedótica dos benefícios de uma escola sem telemóveis, ambas com valor indesprezível, apesar das críticas da ciência dogmática. Contudo, o silêncio nas escolas continua a reinar, mortos-vivos de cabeça enfiada no ecrã, numa relação simbiótica e omnipotente com um objecto que satisfaz todos os desejos. Um objecto que não negoceia, que não retalia, que raramente frustra e que, mal dos males, não se emociona nem empatiza. Diz a evidência que os jovens perdem capacidades relacionais e mesmo capacidades de regulação emocional e afectiva. Não é incomum ver jovens reagirem com agressividade perante a contrariedade, com maior susceptibilidade ao aborrecimento e ao tédio, e com maiores níveis de ansiedade, depressão e stress, o que muitas vezes leva a um circulo vicioso e aditivo de procura de sensações.
Num recente relatório, a Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco) defende não só a limitação do uso recreativo dos telemóveis como também lança dúvidas sobre os benefícios de aprender no digital. Este é apenas um exemplos dos inúmeros estudos e documentos sobre o assunto. Qual é, então, a dificuldade em regular/limitar a sua utilização? Talvez seja mais fácil gerir os recreios com telemóveis do que ter de voltar a ouvir o ruído das relações, os gritos de entusiasmo dos alunos, as correrias escola fora, as aventuras e as malandrices que fazem parte do crescimento.
Talvez no intimo de alguns alunos e/ou staff escolar esteja um qualquer desejo de fugir para a “ilha dos selvagens”, a ilha onde a espontaneidade ainda existe, em vez de viver no condicionamento “Huxleyano” deste Admirável Mundo Novo do silêncio escolar e da produção de zombies em massa, supostamente felizes na sua ignorância.
A palavra proibir assusta talvez pelas reminiscências totalitárias, mas a lei não permite tabaco nas escolas, nem substancias psicoactivas, nem objectos perigosos. Talvez seja difícil conferir a palavra perigo a um objecto que parece inofensivo e que passou a fazer parte do dia a dia de todos nós. Talvez por isso coubesse aos pais regular a utilização dos telemóveis dos seus filhos. Contudo, com tanta disparidade de perspectivas, terá de ser a escola (ou a lei) a criar a regulamentação geral, para que todos possam guiar-se pela mesma regra.
Na última petição pública para o efeito, neste momento com mais de 20.000 assinaturas, fica claro que a regulamentação já existe. É, contudo, omissa à sua utilização nos recreios, espaço por excelência de aprendizagem pela relação e pela brincadeira, aprendizagem que o instrumento celular previne e entorpece.
Poderia fazer sentido a inclusão e participação de pais e alunos na construção das regras, em tom democrático e cívico, mas fica claro que alguma regra adicional terá de existir e que a passividade não pode continuar.
Tenho esperança que o bom senso surja com a rapidez necessária, porque esperar todos os dias cansa.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre João G. Pereira -
João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.