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“Sociedades paralelas” na Dinamarca: fronteiras imaginárias em renovação

Sønderbro é uma área vulnerável de Copenhaga, conhecida por abrigar pessoas com dificuldades socioeconómicas e por ser um refúgio diário para cerca de 200 a 300 pessoas sem-abrigo. Com uma concentração acima da média de residentes de pessoas imigrantes e descendentes de países “não ocidentais”, o bairro está a ser alvo de uma renovação urbana que levanta questões sobre inclusão, segregação e o futuro da habitação social na Dinamarca. Esta reportagem explora como as mudanças em Sønderbro refletem tendências nacionais e impactam a vida dos seus moradores.

Texto de Redação

Ilustração de Marina Mota

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Sundholm e Hørgården: dois mundos que não se misturam 

Do parapeito da Fabrikken (fábrica em português), a paisagem revela contrastes arquitetónicos que desenham fronteiras invisíveis. Simon é um ilustrador sediado na Fabrikken, o maior estúdio para artistas da Dinamarca, que se situa bem no centro de Sønderbro. Tinha-me convidado para conversarmos no jardim das traseiras, que se inclui no plano da renovação urbana, mas a instabilidade da meteorologia da Dinamarca não o permitiu num dia de Agosto.

©Bárbara Alves

Com Sundholm a norte e Hørgården a sul, esta área foi outrora composta por espaços abertos com poucas e pequenas quintas, onde agricultores locais viajavam para vender os seus produtos nos mercados de Copenhaga. No entanto, do alto da Fabrikken, o que prevalece é um passado mais recente, ainda perceptível no quotidiano. 

A norte, os edifícios amarelos de estilo italiano do início do século XX que formam Sundholm, ainda guardam as cicatrizes da antiga instituição de trabalho forçado, criada em 1908, para  reclusos, pessoas sem-abrigo, pessoas com doenças mentais e pessoas desfavorecidas. 

Embora o canal e a vedação que cercavam a instituição tenham desaparecido, e já não exista trabalho forçado, uma série de instituições sociais que prestam vários serviços aos sem-abrigo permaneceram em Sundholm e cerca de 200 a 300 pessoas visitam, deambulam e utilizam a zona, seja para procurar dormida na pousada para pessoas sem-abrigo ou convívio entre os seus pares. 

Simon mantém pouco contato com os moradores do bairro, exceto durante o evento anual de portas abertas da Fabrikken, que atrai principalmente os vizinhos mais próximos de Sundholm Syd, um empreendimento de habitação sem fins lucrativos construída em 2015 para famílias com um maior poder económico. Ou quando ajuda alguns usuários de Sundholm, pessoas sem-abrigo, quando necessitam de ajuda. “Às vezes dormem no jardim [da Fabrikken] e está tudo bem”, explica Simon concluindo que a pousada se pode tornar bastante lotada, “às vezes vão ao jardim porque acho que precisam de estar sozinhos.”

No entanto, com relação a Hørgården, ao sul da Fabrikken, Simon admite não ter contato com os moradores. A única exceção foram alguns colegas artistas que relataram incidentes, como a venda de drogas perto das janelas de seus estúdios e o incêndio de um dos armazéns, suspeito de envolvimento com gangues locais. O incêndio deixou algumas marcas na atmosfera circundante do parapeito da Fabrikken. Algumas árvores ficaram sem vida e uma lâmpada municipal ainda continua destruída. Mas a divisão entre os bairros pressente-se, e principalmente, a distância e o desconhecimento das suas gentes.

Niels Frisch Kjølholt, o gestor da equipa da renovação urbana que pertence à Administração Técnica e Ambiental do Município de Copenhaga, adianta que “a discussão sobre esta renovação urbana arrancou quando o Governo começou a fazer estas listas de zonas carenciadas ou desfavorecidas e passou a chamar-lhes de guetos”. 

Agora chamadas de “sociedades paralelas”, Hørgården, parte integrante de Sønderbro, foi incluída nesta lista nos anos de 2018 e 2019, tendo o Município de Copenhaga decidido fazer renovações em todos os locais com “estas áreas habitacionais que estavam na lista para tentar mantê-las fora da lista”, explica o gestor. 

A renovação urbana pretende ser inclusiva, transformando o espaço com a participação ativa dos moradores. Contudo, a participação no processo de renovação urbana não é igual de área para área e, de acordo com o próprio gestor da renovação, existe uma sub-representação dos membros de Hørgården nas reuniões dos grupos de projetos que são compostos por todos os residentes e associações situadas no bairro, que queiram participar no processo de planeamento. Simon participou em algumas destas reuniões e foi assim que o conheci. 

Segundo Rasmus, “é o grupo de projeto que decide o que vai acontecer aqui [neste caso, o espaço ao redor da Fabrikken]” em negociação com a equipa da renovação urbana.” Um plano da renovação urbana será delineado com as ambições e desejos deste grupo e, posteriormente, será apresentado ao comité gestor da renovação da área, que é formado também por residentes eleitos, representantes de empresas e associações, instituições públicas e privadas, e todas as administrações do município. 

“Dentro deste plano do bairro [o plano da renovação urbana] há um total de 60 milhões coroas dinamarquesas (aproximadamente 8 milhões de euros). Nós apresentamos e definimos os projetos, damos sugestão de cronograma, quando vai começar e fazemos uma proposta de como gastar o dinheiro. Depois temos uma reunião com o comité gestor e eles têm que aprovar”, explica o arquiteto. Se concordarem, o dinheiro é libertado e a equipa de renovação começa a trabalhar nos projetos. Se não, “temos que descobrir conjuntamente o que vamos fazer”, esclarece Rasmus. 

Após uma festa aberta de introdução, no início de 2024, realizada no Maskinhallen, um espaço cultural localizado em Sundholm, com comida, artes performativas e apresentação do projeto da renovação urbana, foram enviados 9.000 convites a todas as pessoas que vivem no bairro através de um sistema de correio digital, usado na Dinamarca, chamado de E-box, para a participação nos eventos e reuniões dos grupos de projeto. 

Mas se no primeiro evento foram cerca de 200 pessoas, na segunda reunião foram cerca de 80, e agora há apenas “cerca de 20 a 25 cidadãos que disseram que realmente queriam participar no projeto e discutir decisões sobre como este projeto de renovação deve ser formado”, esclarece Niels, apontando a existência de um efeito “funil” onde a participação passou de algo muito aberto e abrangente para algo mais filtrado “com pessoas que têm um tipo especial de dedicação ao projeto”, nas suas palavras. 

Ahmed, de 27 anos, tal como os restantes residentes de Sønderbro, recebeu o convite para participar numa das reuniões. “Estava livre naquela tarde”, lembra, “vou dar uma vista de olhos porque eles [referindo-se aos responsáveis das passadas e atuais renovações no bairro] fazem sempre estas coisas na área que ninguém percebe porque as fizeram”. “Ou colocam uma cerca. Ou derrubam o campo de futebol. Por exemplo, havia aqui um pavilhão mesmo ao lado do banco onde, há pouco, disse que nos podíamos sentar. Era um pequeno telhado com alguns bancos. E depois eles ficaram tipo: ‘Ah, mas os adolescentes estão o tempo todo lá a conviver e a fumar.’ Derrubaram-no porque não queriam que os adolescentes ficassem lá e eles [os responsáveis pelas renovações] continuam a tirar coisas. As pessoas não têm um lugar só para se sentarem e relaxarem. Este é um país onde chove a maior parte do tempo, portanto não podes ficar ao ar livre”. 

Ahmed vive em Hørgården, o bairro, cuja inclusão na lista do governo das “sociedades paralelas” abriu caminho para a discussão de renovação desta área e que, paradoxalmente, menos participação tem nos eventos organizados pela equipa do município. Foi à primeira reunião e a partir daí deixou de estar muito envolvido. “Era só burocracia a andar em círculos e a falar em fazer um pequeno relvado ou mudar o estacionamento. Não é disso que o povo precisa”.

Renovar “sociedades paralelas”

Saio de Sundholm e atravesso a estrada que me leva a Hørgården. A estrada onde física e mentalmente dá fim e início a um dos bairros. De blocos cinzentos e modernistas, o verde dos jardins que se escondem nos braços longos do complexo habitacional salta à vista e pressente a um estranho a sensação de novo. Hørgården esteve e está também agora em renovação até 2029, parte integrante da renovação de área de Sønderbro. 

Desde 2010, que todos os anos, no dia 1 de dezembro, o governo dinamarquês publica uma lista de “sociedades paralelas” (anteriormente chamada lista dos guetos) onde identificam bairros do país considerados “em risco”. Segundo a última publicação da lista, uma “sociedade paralela” é definida como uma área de habitação social com pelo menos 1.000 residentes, onde a proporção de imigrantes e descendentes de países não ocidentais excede 50% e onde pelo menos dois dos quatro critérios a seguir são atendidos: 

1. A proporção de residentes com idades entre 18 e 64 anos que não estão ligados ao mercado de trabalho ou à educação excede 40%, calculada como a média dos últimos 2 anos. 
2. A proporção de residentes condenados por violação do Código Penal, da Lei de Armas ou da Lei de Substâncias Euforizantes é pelo menos 3 vezes superior à média nacional calculada como média nos últimos 2 anos. 
3. A proporção de residentes com idades entre 30 e 59 anos que têm apenas o ensino básico excede 60%. 
4. O rendimento bruto médio dos contribuintes de 15 a 64 anos na área (excluindo aqueles em educação) equivale a menos de 55% da renda bruta média do mesmo grupo na região.

Hørgården, uma das áreas pertencentes a Sonderbro, foi considerada uma “sociedade paralela” nas listas de 2018 e 2019, mas nos últimos anos passou a ser considerada uma “área de prevenção”. Isso significa que, apesar de não estar mais na lista das sociedades paralelas, ainda tem mais de 1.000 residentes e uma proporção de imigrantes e descendentes de países não ocidentais superior a 30%." Além disso, estão preenchidos pelo menos dois dos quatro critérios seguintes: 

1. A proporção de residentes com idades compreendidas entre os 18 e os 64 anos que não estão ligados ao mercado de trabalho ou à educação é superior a 30% (média dos dois últimos anos). 
2. A proporção de residentes condenados por violações do Código Penal, da Lei de Armas ou da Lei sobre Substâncias Euforizantes é pelo menos 2 vezes superior à média nacional (média de dois anos).
3. A proporção de residentes com idades compreendidas entre os 30 e os 59 anos que apenas têm o ensino básico ultrapassa os 60% de todos os residentes na mesma faixa etária. 
4. O rendimento bruto médio dos contribuintes com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos na área (excluindo os que procuram educação) é inferior a 65 por cento do rendimento bruto médio para o mesmo grupo na região.

Nos documentos políticos oficiais, como a lei das “sociedades paralelas” e ao longo das bases de dados das leis oficiais dinamarquesas, a Dinamarca utiliza os termos “ocidental” e “não-ocidental” com frequência. Sob a lei dinamarquesa, um país “ocidental” é um de “todos os 27 países da UE, Reino Unido, Andorra, Islândia, Liechtenstein, Mónaco, Noruega, San Marino, Suíça, Estado do Vaticano, Canadá, EUA, Austrália e Nova Zelândia”. O resto do mundo, incluindo todo o continente africano, a América Latina, o Médio Oriente e a Ásia são consideradas não-ocidentais. 

Daniel Tomicic, 27 anos, é um dos moradores de Hørgården e tem participado em algumas iniciativas da equipa de renovação de Sønderbro. Numa delas em particular ajudou a juntar mais de 80 jovens para a discussão sobre a área a pedido da equipa da renovação, que tem tido alguma dificuldade em atrair este público para o debate.

©Bárbara Alves

Daniel conhece bem as pessoas da sua área — prova disso são as várias vezes em que fomos interrompidos por transeuntes enquanto ele me mostrava os cantos do bairro, por vezes confuso e labiríntico para quem não é local.  Todos conhecem os irmãos, irmãs e familiares uns dos outros e conta com algum orgulho e na brincadeira que se precisar de mudar um dia, não precisa de contratar uma empresa de mudanças, basta chamar os amigos da zona. 

Não esconde o criticismo nem a revolta sobre a lista do Governo publicada anualmente. Na sua opinião, é uma continuação da discriminação. “Posso arranjar emprego, posso trabalhar, tenho educação, não cometo crimes, posso fazer até alguma arte, que acaba por ser a minha escolha como quero viver a minha vida, mas a ascendência é algo com que eu nasci, portanto, nunca posso mudar”, conta. “É dizer na lei que ascendência não-ocidental é igual a gueto, é racismo estatal.”

Segundo Daniel, muitas pessoas não sabem o que está a acontecer com a renovação. “Todos os jovens com quem conversei não sabiam. Ou não acharam interessante porque ninguém explicou porque é que isto é importante ou porque é que isto pode ter um efeito positivo sobre eles.”

Neste bairro onde vê sobretudo bastante companheirismo e simpatia nos atos da vida quotidiana, não nega a existência de algumas “histórias negativas”, mas realça também que há muitas “histórias positivas”, condenando o estigma que os moradores enfrentam devido à forma como os problemas do bairro são enquadrados pela lista. 

Para Henrik Gutzon Larsen, investigador em política urbana e coautor do estudo “Gentrificação: gentil ou traumática? Políticas de renovação urbana e transformações em Copenhaga”, a lista anual do governo representa, em parte, uma “etnização dos desafios sociais”. 

Existem “algumas habitações sem fins lucrativos onde existem mais pessoas com problemas sociais, tais como, desemprego, baixo nível de educação, baixada integração no mercado de trabalho, etc, mas o que cada vez vemos mais, e em particular quando começamos a falar de ‘guetos’ [faz menção para colocar entre aspas] é que se tirarmos esses sítios, resolvemos o problema.“

O investigador explica que nem sempre foi assim, anteriormente, os problemas sociais como o desemprego não eram abordados numa perspetiva étnica, mas a mudança do contexto político há cerca de 30 anos contribuiu para a normalização da etnização do discurso e hoje “na Dinamarca, se falarmos sobre desemprego, começamos imediatamente a falar sobre populações migrantes ou novos cidadãos”. 

Um problema local ou nacional? 

Ahmed tem 27 anos e viveu toda a sua vida em Hørgården. Quando a sua avó chegou à Dinamarca vinda da Polónia com a mãe ao colo, a situação política era diferente. Nessa época conta “existiam imensos programas de integração para imigrantes” e à avó foi-lhe oferecida uma formação em dinamarquês como técnica de computadores. Entre risos, Ahmed lembra que sua avó adorava contar a história de quando, nos primeiros dias na Dinamarca, foi convidada para a casa de colegas e confundiu um molho marrom típico da culinária local com chocolate, provocando gargalhadas por conta das diferenças culturais. 

A sensação que Ahmed tem é que nessa altura as pessoas imigrantes não eram deixadas à sua sorte. E hoje, após quase 27 anos vivendo no bairro, ele diz sentir-se “deslocado”, considerando ser um problema transversal às pessoas do bairro, onde 57,3% dos residentes, segundo as estatísticas dinamarquesas, são pessoas imigrantes e/ou descendentes de países não-ocidentais. “A culpa é do governo. Se vires as notícias, eles vão sempre destacar estrangeiros ou algo do género. Ele não é estrangeiro. Cresceu aqui. Apenas é uma diferente etnia”, defende Ahmed. 

O tom etnicizado não se restringe apenas ao Governo, mas também no bairro existem alguns comentários hostis que se materializam nas cercas ao redor das habitações. Na única reunião que Ahmed assistiu, conta que uma residente estava a falar sobre todas as cercas que foram, colocadas, em renovações passadas, apoiando a sua construção, e manifestando desagrado com as crianças que usam o espaço ao redor das casas: “não queremos que as crianças fiquem na área”, protestava a residente. Perplexo pela hostilidade do tom, e pelo efeito que as cercas produzem na área, Ahmed interveio questionando-a: “mas quem é que fica por aí?”,  “não são as pessoas que lá vivem?”. “Não”, respondeu a interpelada, “são todas as crianças estrangeiras porque não podem trazer amigos para casa, portanto, estão apenas a vaguear pela rua.”

A falta de espaços para conviver é um dos maiores problemas do bairro, e para o jovem existe uma relação forte entre a falta de oportunidades que se sente no bairro e renovações passadas que “retiraram muitos dos espaços para as crianças e jovens conviverem”. No entanto, nota que “até o tom ou a hostilidade mudar, nada vai mudar.” “Podem construir lojas em segunda mão ou jardins verdes, que nada vai mudar.”

Os pais do Daniel mudaram-se para Copenhaga na década de 80 por razões diferentes. O pai dele emigrou da Croácia para procurar melhores condições de trabalho. A mãe saiu do Líbano com estatuto de refugiada quando Israel bombardeou o Líbano na época. Chegaram ao Urban Planen, o complexo habitacional do qual Hørgården faz parte, porque o preço dos apartamentos eram acessíveis. Com uma arquitetura fechada, estes blocos de apartamentos que se encerravam sobre si, foram construídos no final da década de 60, para dar resposta ao crescente aumento da população e a falta de apartamentos decentes na cidade. 

Tinham jardim de infância, escolas, clubes juvenis, supermercados, bibliotecas, tudo o que era essencial à vida quotidiana. Daniel confessa que só realmente tinha percebido o quão isolado a zona era quando após terminar o ensino secundário começou a frequentar o ginásio noutra parte da cidade. Estupefacto pela descoberta, conclui que este isolamento na época podia ser bastante problemático quando grupos socioeconómicos mais vulneráveis mudavam todos para a mesma área. “Há uma maior probabilidade que surjam problemas sociais, as pessoas não tomam educação, algum crime surge, e quando por cima disso, se está isolado, pode ser problemático em algumas situações”, explica. 

Segundo Daniel, a situação no bairro já não é a mesma que se vivia nas gerações passadas. E há bastantes exemplos de sucesso que o comprovam. “Quando saio no meu bairro, o meu vizinho é professor, o meu outro vizinho é dentista, os meus amigos são assistentes sociais, muitos dos meus amigos abrem empresas, barbearias, restaurantes ou alguns dos meus amigos têm três empregos.”

Mas o “receio” de que “talvez não se tome a melhor decisão na vida” e se “envolvam em algumas coisas que não devem estar envolvidas” ainda permanece. Ahmed não entende o porquê de muitos dos seus antigos colegas terem escolhido o caminho da violência, mas tem a certeza de que “o problema é mais sistémico”, daqueles dos quais não se pode simplesmente “atirar dinheiro”. Na sua perspetiva, a falta de recursos é o principal problema do bairro, há muitas educações subfinanciadas e, por fim, “há muito trauma que está sob a pele que ninguém sabe como realmente resolver.”

Muitas das pessoas que se mudaram para Hørgården estiveram ou têm familiares que viveram em zonas de conflito. Quando chegadas a estes blocos residenciais, Ahmed explica que “simplesmente se desvincularam da sociedade”. ”Sentam-se em casa o dia todo. Não saem ao sol. Têm estas doenças todas como a diabetes ou problemas cardíacos, porque sentam-se em casa o dia todo. Não entram em contacto com ninguém. Tudo na sua casa são problemas. E acho que muito disto é geracional.”

“Construir um parque pode ser algo na direção certa”, diz Ahmed, mas o desfasamento entre os problemas que os residentes de Hørgården parecem viver, com os problemas que são colocados nas reuniões da renovação, têm uma distância imensurável, bem superior à do percurso do bairro até aos escritórios da renovação, que pode explicar a falta de participação deste grupo no processo da renovação.

Também Rasmus Anderson, o arquiteto responsável pela renovação do espaço ao redor da Fabrikken, nos limítrofes de Sundholm e Hørgården, confessa que “gostaríamos muito de ter mais pessoas de Hørgården a envolverem-se neste tipo de trabalho, mas para eles isso não é de todo relevante”, concordando que os seus principais problemas são a sua situação de vida, “como é que é tudo isto, se vão construir mais [habitação] lá, como é que vai influenciar o custo de vida, trabalho e educação”. “Essa é a principal preocupação deles, então quando chegamos aqui e falamos de um espaço urbano onde podem ter uma atividade social ou atividade física, eles pensam que está cá em baixo [enquanto exemplifica uma escala de valores com a mão], não é relevante para eles.”

Segundo o autor Henrik Gutzon Larsen, situar um problema espacialmente é uma forma muito comum de abordar politicamente os problemas. “É muito mais fácil dizer que temos um problema aqui do que termos um problema em todos os lugares.” E, efetivamente, existem locais que necessitam de melhorar os seus serviços para oferecer qualidade de vida à população. 

Contudo, com a lista das “sociedades paralelas”, e ressalvando que “tudo isto é sobre os bens habitacionais sem fins lucrativos” diz verificar-se uma mudança no discurso a partir dos anos 80, que ganha força na década de 90, onde se passa a problematizar geograficamente os grupos socioeconómicos mais vulneráveis, que vivem em habitação sem fins lucrativos, ao invés de percecionar os problemas sociais como o desemprego e a integração de grupos imigrantes a nível nacional. 

Criar políticas de inclusão ou excepção? 

No plano de 2018 denominado “Uma Dinamarca sem Sociedades Paralelas”, o Governo de então apelou à extinção das “sociedades paralelas” até 2030, e solicitou que os municípios e as organizações de habitação sem fins lucrativos fizessem alterações substanciais destinadas a tornar as áreas comercialmente atraentes e mais “integradas” no resto da sociedade. 

O Governo propôs o início de projetos de desenvolvimento urbano para “restaurar e desenvolver as áreas em bairros atraentes com um mix misto de moradores” e “a venda de edifícios existentes, demolições específicas e novas construções de habitações particulares”, se uma área permanecesse por cinco anos consecutivos na lista, com vista a reduzir a proporção da habitação familiar social para um máximo de 40%, segundo a lei § 168 a. 

Para evitar que tal acontecesse, Niels explica que: “nós, a cidade, decidimos ou os políticos decidiram fazer renovações em todos os sítios que tinham áreas habitacionais nessa lista, para tentar mantê-las fora dela”. 

Para o investigador em política urbana e habitação, Henrik Gutzon Larsen, “por princípio, a renovação urbana pode ser separada da gentrificação, mas na realidade muitas vezes estão muito relacionadas, quase impossíveis de se desembaraçar.” Segundo ele, a estratégia destes projetos promovidos pelo Estado adotam políticas de mix social onde se afirma que vão “tentar arranjar um mix social maior ou alguma variante dessa palavra, dizendo que temos aqui um bairro com desafios diferentes que se relacionam com o perfil socioeconómico das pessoas e seria bom que se trouxesse algumas pessoas que talvez tenham um perfil socioeconómico mais forte”, acreditando-se que tal criaria efeitos noutras pessoas da área. 

Contudo, o investigador explica via zoom, que “muitas vezes há a parte não dita: se se trouxer alguém, precisa-se de expulsar alguém ou precisa-se de criar mais espaço.” “Se se conseguir trazer um novo grupo, isso poderá, de qualquer forma, afastar o antigo grupo, por exemplo, através de aumentos de preços”, afirma. 

De acordo com Rasmus, a tarefa do mix social não diz respeito à renovação de Sønderbro, no entanto, esta renovação que melhora o espaço urbano e as conexões do bairro está conectada com dois projetos do Plano de Alteração para Hørgården: “Possível Adensamento em Hørgården - novos tipos de habitação para mais pessoas” e “Projeto de infraestrutura em Hørgården - de área residencial fechada para aberta, verde e ativa”. 

Tal como o Plano de Alteração para Hørgården menciona estes dois projetos que são da responsabilidade da organização sem fins lucrativos 3B proprietária do complexo habitacional de Hørgården “não fazem directamente parte dos projectos de Renovação da Área de Sønderbro, mas a Renovação da Área irá, na medida do possível, apoiar os projectos e apoiar um bom tráfego e uma ligação percebida entre a zona residencial - Hørgården e a cidade circundante."

Para além das renovações, novas leis começaram a ser aplicadas aos habitantes que vivem especificamente nas áreas abrangidas pela lista. Por exemplo, aplicar-se-ão sanções mais elevadas em determinadas zonas (zona de punição mais rigorosa) e expulsão das áreas em caso de cometimento de delitos. 

“Está marcado e escrito num mapa que se um polícia te parar aqui, não podes dizer “não” se eles quiserem revistar as tuas coisas. Há muita tensão e violência de gangues, portanto um polícia não precisa de ter um mandato para te revistar os bolsos. A qualquer momento. Não precisam de um motivo. Tens esta energia de suspeito. Esta forma de ser tratado como um inimigo do Estado”, diz Ahmed enquanto falávamos no centro de reciclagem construído numa renovação passada, há não muitos anos atrás. 

Também Mohammed, funcionário no centro juvenil, que fica mesmo ao lado do centro de reciclagem, explica que “existe uma lei que se um filho teu tiver problemas na área, não necessariamente algo louco, podem expulsar toda a família do apartamento”. 

Na secção “criminosos fora dos guetos” do documento “Uma Dinamarca sem Sociedades Paralelas”, o Governo propõe “que os inquilinos e os membros do agregado familiar que cometam crimes dentro e em redor da área residencial onde vivem possam ser despejados das suas casas na área de forma mais rápida e eficaz.” Os tipos de crimes abrangidos são ameaças, vandalismo, incêndio criminoso, violência, roubo, furto, extorsão, posse ilegal de armas e compra e venda de estupefacientes. 

Com efeito, segundo o artigo § 63 d da Lei da Habitação Pública, a polícia pode divulgar informações a uma organização de habitação sobre decisões criminais relativas a infrações cometidas por um residente na área residencial em que a pessoas em questão mora, “quando a divulgação for considerada necessária como parte de um esforço de criação de segurança existentes na área de habitação em questão”.

Após vários esforços do Governo para facilitar o despejo dos residentes em habitação social, em Junho de 2022, foi aprovado um projeto de lei que altera a Lei da Habitação Pública e acrescenta, no artigo §90, n.º1, ponto 10, a possibilidade de revogação de contrato em situações em que a condenação criminal ainda não é definitiva. 

Para além destas medidas, existem condições especiais de arrendamento, tais como, os municípios não podem atribuir candidatos a habitação em áreas urbanas vulneráveis se um membro do agregado familiar tiver recebido subsídio de integração, assistência educacional, pensão de invalidez, subsídio de desemprego ou subsídio de doença durante pelo menos seis meses.

Como Hørgården é atualmente uma “área de prevenção” segundo a lei dinamarquesa, algumas das medidas anteriormente aplicadas à lista das “sociedades paralelas” deixaram de vigorar, mas há uma que permanece: o arrendamento flexível. Esta medida permite ao conselho municipal fazer um acordo com a organização de habitação social para que as casas de família vagas numa secção habitacional sejam alugadas de acordo com critérios especiais. Isso significa que os candidatos a moradia que atendem a certos critérios, como emprego ou educação, devem estar na frente da fila para uma casa de família pública vaga. 

Segundo o Plano de Alteração para Hørgården, a cidade de Copenhaga celebrou um acordo de arrendamento com as organizações de habitação social, regulando a forma como a arrendamento da habitação social ocorre. O acordo de arrendamento garante que os recém-chegados nas áreas de habitação social mais vulneráveis ​​têm “recursos”, no sentido em que estão em trabalho ou educação, têm rendimentos a um determinado nível e não foram condenados por certos tipos de crime, garantindo uma composição de residentes sustentáveis”. 

Daniel Tomicic declara, com alguma revolta: Estão a construir casas de baixo rendimento, mas estão a tornar o acesso difícil às pessoas que têm rendimentos baixos”. Na sua opinião, estas listas apenas estão a mover o problema para outro local. Aquando da sua mudança para o bairro há alguns anos atrás, onde vive sozinho num apartamento, partilhou que teve de reunir alguns documentos que provaram que estava a estudar e entregar um registo criminal limpo. “Já não te podes mudar para a área se em papel não estiveres correto”, afirma. 

Segundo o estudo “Estigmatização de Espaço liderada pelo Estado e a Política de Exceção” de Sara Olsen e Henrik Gutzon Larsen o enquadramento e objetificação à escala das “sociedades paralelas” permitiram uma política de exceção com a aplicação de medidas extraordinárias a locais específicos. 

Para além da demarcação de áreas específicas, com regras especiais, onde vivem grupos socioeconómicos mais vulneráveis, falta notar também que o alvo desta lista são as habitações sem fins lucrativos. “Em parte, é ter uma visão estreita, apenas olhando para os bens habitacionais sem fins lucrativos, por exemplo, a lista não olha para o arrendamento privado. Se olhar para isso, então também podemos descobrir que existem outros locais onde também têm problemas”, explica o investigador Henrik Gutzon Larsen, via zoom. 

20% do mercado imobiliário dinamarquês pertence a organizações de habitação sem fins lucrativos ou sociais. Esta estrutura imobiliária, num país marcado por uma tradição do Estado-Providência, ou Estado do Bem-Estar Social, permite dar a oportunidade de arrendamento acessível a todos aqueles que vivem e trabalham nas maiores cidades da Dinamarca. Mantidas por um Fundo Nacional de Construção fundado pelas mesmas organizações para promover o autofinanciamento e manutenção da habitação social, estes apartamentos e casas não têm como objetivo obter lucro. Apenas garantir inclusão e habitação para todos, ajudando a manter os preços baixos no mercado imobiliário. 

Segundo o autor Henrik Gutzon Larsen, a retórica usada pelos partidos de direita sobre a lista das “sociedades paralelas” abriu caminho para a hostilização dos bens imobilários modernistas construídos na “golden age” - de 1958 a 1972 - do Estado-Providência dinamarquês. “Os partidos de direita nunca gostaram de habitação sem fins lucrativos. E em vários casos tentaram implementar as políticas aplicadas nos Estados Unidos ou na Suécia, onde se vende habitação sem fins lucrativos, em parte porque o Estado de alguma forma está envolvido, mas também porque são 20% das habitações dinamarquesas que estão fora do mercado.”

No dia 21 de março de 2023, de acordo com o Plano de Alteração para Hørgården, os moradores de Hørgården votaram para prosseguir com um projeto de densificação. Este possível adensamento pretende criar tipos de habitação privada e habitação social para idosos, gerando uma “composição de residentes mais mista”. O atual “quartel institucional temporário” do bairro que contém instituições para crianças e adolescentes e uma “praça comercial desgastada” onde os moradores têm um pequeno mercado, um bar, e uma pizzaria, serão demolidos, se este possível plano de adensamento avançar.

Apesar de não estar muito envolvido na renovação do bairro, Mohammed, funcionário do centro juvenil de  Hørgården, que se situa ao lado desta área, lembra-se de uma votação sobre a venda do lote ao redor do centro juvenil e, possivelmente, a área que inclui o centro juvenil. “Ninguém veio falar conosco aqui, portanto não sabemos realmente o que vai acontecer a este lugar. Simplesmente sei que foi uma votação estranha, as pessoas não sabiam realmente o que estavam a votar e poucas pessoas estavam lá. Portanto, não representam todas.” 

Para Henrik Gutzon Larsen, “gerir este tipo de políticas muito etnicizadas e, com particular foco neste tipo de habitação, supera outro propósito, livrar-se da habitação sem fins lucrativos.” Atribuindo problemas excepcionais a estas áreas, “isso significa que temos que fazer coisas que seriam inéditas anteriormente, vender habitação sem fins lucrativos.”

No centro juvenil do bairro constrói-se inclusão, mas o futuro é incerto

Mohammed é funcionário do clube juvenil de Hørgården há já 20 anos onde Daniel e Ahmed conviveram enquanto adolescentes quando saíam das aulas. Mesmo ao lado do centro de reciclagem, este espaço para jovens dos 13 aos 18 anos se reunirem depois da escola, é um espaço de convívio onde se mantém os jovens fora das ruas e prepara-se para o futuro. 

Era um final de tarde de quarta-feira quando visitei o centro juvenil. As aulas na Dinamarca já tinham começado. Estávamos na segunda semana de Agosto. E quarta-feira é dia de jantar comunitário. Hassan, o outro assistente social do centro, e também morador em Hørgården, já estava na cozinha com o avental a preparar o salmão no forno e alguns jovens também já lá tinham chegado. Se quiserem, podem ajudar a preparar o jantar e, assim, não precisam de pagar. “Mas como são apenas 10 coroas dinamarquesas (1,34 euros) pelo jantar”, declara Mohammed com um sorriso confidente, “a maioria paga”. Alguns estavam na sala dos computadores, outros estavam a jogar Playstation, outros estavam nos sofás, distraídos nos telemóveis, e ainda havia quem estivesse a cuidar muito atentamente do tomateiro do pequeno jardim que fica na entrada no centro.

99% do seu trabalho é estabelecer relações. “Aprender sobre os jovens. Passo a passo. Para que os conheçamos. Para que conheçamos a sua personalidade. E para que nos conheçam. Após algum tempo, estabelecemos uma relação e conseguimos trabalhar com eles”, explica com calma, um modo paciente que se nota também com os jovens, enquanto estamos na esplanada do centro juvenil. 

Vão entrando e saindo jovens. O sol ainda aquece e o vento pouco assopra. Dali a umas horas o jantar será servido e dar-se-á início a um final de tarde de “boas conversas”. Por aquela mesa, já passaram a geração de Daniel e Ahmed, Hassan que trabalha no centro como assistente social, e agora a geração do irmão mais novo de Daniel. 

O centro juvenil é um “porto seguro” onde os jovens podem descontrair depois da escola ou em férias e ser “eles próprios”, nas palavras de Mohammed, mas não só. É também um espaço de orientação social e de preparação para a vida adulta. Principalmente, “num bairro que costumava ser, e ainda é, uma área problemática onde a maior parte dos jovens andam nas ruas e fazem coisas que não devem fazer”, de acordo com Hassan, assistente social há já 11 anos no centro. 

Antes de fazerem 18 anos, há uma lista de tarefas que os funcionários esforçam-se por fazer cumprir. É uma lista que reúne conhecimentos práticos, mas que muitas vezes é do desconhecimento de algumas famílias do bairro. “Ajudamo-los com as coisas que têm de saber, os fundamentos. Por exemplo, o dentista é gratuito até aos 18 anos e quando os nossos jovens têm 17 anos, lembramo-los para fazerem os últimos check-ups antes de lhes custar”, esclarece Hassan. 

Também os ajudam a candidatar-se ao cartão de residência, se ainda não têm o passaporte, um processo que se veio dificultar ao longo dos anos, apoiam-nos a candidatar-se às listas da habitação sem fins lucrativos, para que possam ter um apartamento a longo prazo a preços acessíveis e organizam ainda visitas a algumas empresas ou instituições para que os jovens possam ter uma ideia do percurso académico e/ou profissional que gostariam de seguir. 

Neste momento, Mohammed não está preocupado com os jovens que vê e trabalha. Diz “estarem num bom caminho com a escola e o trabalho.” Fazem desporto. “Não há crimes, nem gangues.” Portanto, diz ser um prazer estar a trabalhar. Mas a votação do 21 de março de 2023 sobre a venda do espaço que é propriedade do 3B, a organização de habitação sem fins lucrativos que possui todos os bens imobiliários de  Hørgården e Sundholm Syd, e é responsável pelo projeto de densificação do bairro de  Hørgården, mexeu com a tranquilidade das águas. A incerteza sobre o futuro do espaço que pertence ao centro juvenil é sentida não só pelos funcionários, mas também pelos antigos membros Ahmed e Daniel.

“A única coisa que sei é que vão vender”, afirma Mohammed, “algumas empresas privadas talvez vão comprar”. Os edifícios com telhado vermelho ao lado - o “quartel institucional temporário” mencionado no Plano de Alteração de Hørgården - compõem instituições para crianças e adolescentes. Há um centro de acolhimento para jovens que foram retirados da tutela dos pais, jardim de infância e centro infantil. 

Tal como Mohammed afirma, a área é atraente, fica perto do centro da cidade, é bem conectada com a rede do metro e autocarro e “Copenhaga já não tem muitos lugares para construir”. “Fizeram-no ali ao lado no Urban Planen, construíram também habitação privada, portanto acho que é o mesmo que vai acontecer aqui, daqui a 20 anos apenas pessoas com dinheiro vão viver aqui.”

Hassan ficaria mais do que feliz se as instalações fossem renovadas e o deixassem com a função que tem agora, mas “se removerem o centro daqui e transferirem-no para outro lugar, vai ser difícil para nós estabelecer uma relação mais forte com os nossos jovens e crianças”. “É aqui que vivemos e é aqui que estamos, por isso somos mais fortes quando estamos juntos.”

Para além da incerteza quanto ao espaço, o orçamento do centro juvenil, providenciado pelo Município de Copenhaga, tem sofrido cortes ao longo dos anos. Já não conseguem fazer viagens fora da Dinamarca como faziam, e tal como Ahmed, ao nosso lado a ajudar na tradução, intervém: “Todos os anos dão um bocado a menos, por isso não podemos realmente combater porque não é algo tão drástico.” “Têm que dispensar funcionários todos os anos ou fazer menos de algo. Eles não conseguem autofinanciar-se, até que no final receberão tão pouco dinheiro, que ninguém resta para se queixar”, esclarece Ahmed. 

Desconhecendo o destino do centro que é um “porto seguro” para os jovens e crianças do bairro, há no ar uma sensação de hesitação e perda. Principalmente, para os jovens que se queixam de que no bairro não há “espaços para estar”. 

Daniel tem “toneladas de memórias” do campo de futebol que agora é uma estufa urbana. Alvo de uma renovação em anos anteriores, existe alguma controvérsia face a este jardim interior, onde vi uma vez, uma senhora de alguma idade a cuidar de algumas plantas. 

Costumava ir para o campo de futebol todos os dias com os amigos. O centro juvenil ficava perto e o melhor amigo vivia a alguns metros de distância do terreno. Reuniam-se sempre cerca de 10 a 15 rapazes. “Um dia vim aqui, tinham acabado de o remover. Quem teve uma palavra a dizer? Os jovens não queriam que fosse removido. Poderiam fazê-lo em 10 000 lugares diferentes ou ali mesmo, não há nada, é apenas relva. Porque é que deveriam de fechar o campo de futebol para fazer outra coisa?”, questiona-se um bocado irritado com o desenvolvimento de passadas renovações urbanas na áreas.

Segundo Ahmed, a falta de recursos das famílias dos bairros, não só afetam os patriarcas e matriarcas das famílias, mas também as juventudes vividas na área. “Muitos deles não têm muitos recursos, portanto, nem sempre há muito para fazer em casa. Muitos deles acabam por estar a maior parte do tempo fora. Por isso, se tirarem todos os campos de futebol ou os parques infantis e tudo o mais, eles apenas são deixados a vaguear”. 

Ahmed defende que deveria ser positivo investir nas infraestruturas para os jovens, em vez de “os alienar”. Conta que tem visto nos últimos tempos algo que nunca presenciou enquanto crescia. Pessoas que estão apenas de pé numa esquina com “um olhar em branco à espera de que algo aconteça”. 

Quebrar fronteiras invisíveis 

Chegámos à rua onde Hørgården termina física e mentalmente para o bairro. Sundholm avista-se a norte outra vez com os novos apartamentos da 3B - Sundholm Syd - rodeados por árvores que fazem sombra neste dia solarengo de Agosto, a Fabrikken esconde-se atrás de umas colinas de vegetação desordenada e ao alto os imponentes edifícios amarelos do início século XX que servem de instituições de apoio aos sem-abrigo, permanecem no mesmo local que lhes pertence há já mais de um século. 

Ao Daniel, sempre lhe foi dito para não atravessar a rua. E quando era mais novo até tinha algum medo de por lá passar. Ouvia histórias que as pessoas mais velhas contavam sobre as pessoas sem-abrigo que lá viviam e o consumo de substâncias nas ruas. A prisão juvenil também fica na zona e, portanto, sempre lhe pareceu uma área “isolada e segregada”.

A equipa de renovação de Sønderbro quer contrariar o isolamento da área e ao redor da Fabrikken, perto da interseção entre Sundholm e Hørgården, quer construir “um ponto de encontro social para todo o bairro”, conta Rasmus Anderson, o arquiteto responsável pelo projeto. 

Daniel encara com algum otimismo este projeto, acreditando que pode tornar a área mais integrada no bairro e quebrar a tendência de escolher o caminho mais longo para evitar passar por lá. “Não sei se pode resolver os problemas sociais, mas pode torná-lo mais integrado, pelo que mais pessoas usarão esta parte da área”, conta enquanto caminhamos pelas ruas de Sundholm. 

Segundo Rasmus, este espaço deve incluir as pessoas sem-abrigo que vivem em Sundholm, “um tipo de grupo muito vulnerável”, os moradores de Sundholm Syd, os residentes de Hørgården, e também as crianças de duas escolas para necessidades especiais que se situam mesmo ao lado. Confessando ser uma área muito complexa, afirma que o “espaço precisa de ser capaz de conter diferentes tipos de utilizações sem excluir certos grupos”. 

O entusiasmo do arquiteto com o potencial da área transparece não só enquanto tivemos a nossa conversa, mas ao longo dos últimos meses, Rasmus e outros membros da equipa de renovação têm-se reunido com os moradores para delinear as ambições e objetivos para o futuro do espaço urbano. 

Considerado um projeto “romantizado” por alguns dos participantes dessas reuniões de projeto, esta iniciativa é a personificação da alma das renovações urbanas em Copenhaga: políticas de mix social são instrumentos de utilização na luta contra a segregação e fragmentação urbana, uma descrição de Ako Musterd e Roger Andersson, no estudo “Mix de Habitação, Mix Social e Oportunidades Sociais”. 

Jørgen mudou-se para Sundholm em 2015 quando a 3B abriu o concurso de habitação para os apartamentos recém-construídos à frente de Hørgården. Chamados de Sundholm Syd, foi ao passar por acaso de bicicleta rumo ao trabalho na Danish Broadcasting Corporation que descobriu que estava aberta uma espécie de “loteria” para ter um apartamento naquele empreendimento. 

O conceito é viver a um custo mais barato, mas ter de fazer a própria manutenção. “Normalmente, quando se arrenda um apartamento, entras, trancas a porta, fazes as tuas coisas, abres a porta de novo e vais trabalhar. Mas aqui como tens de pertencer ao grupo de manutenção e arranjar os aquecimentos das pessoas, ou estar no grupo das atividades sociais e organizar atividades para o Natal, mais do que tentar entrar na tua casa e sair, é quase como tentar criar uma cola entre as pessoas que vivem juntas nestas casas.”

Nas palavras de Niels, este empreendimento foi uma “forma de atrair mais residentes com mais recursos do que existia em Hørgården”. E, efetivamente desde 2015 que chegaram mais 48 agregados familiares ao bairro, pertencentes a um grupo socioeconómico mais forte.

Conscientes do objetivo desta habitação em gerar diversidade no bairro e criar uma mistura social, segundo Jørgen, todos os novos moradores sabiam dos compromissos que tal envolvia. “Os sem-abrigos que às vezes fazem barulho, tens a prisão juvenil ao lado onde os jovens lançam fogo de artifício e choram no meio da noite. É um pouco irritante, mas é o que é. Alguns de nós viemos com um entendimento de, por favor, não chorem, por favor, não roubem, comportem-se normalmente e todos nós ficaremos felizes, mas esse não foi o mundo em que fomos colocados.” (Muitos dos jovens reclusos na prisão juvenil de Sønderbro têm amigos no bairro e são estes que lançam fogo de artifício por fora, para os que estão reclusos na instituição.)

As políticas de mistura social defendem que a chegada de grupos socioeconómicos fortes para bairros com desafios sociais e económicos, podem ter efeitos positivos nos moradores pré-existentes e melhorar as oportunidades destes grupos. No entanto, desde que Jørgen chegou ao bairro em 2015, admite que os vários grupos não se encontram no dia a dia. 

Se passar por Sundholm de bicicleta, vê as pessoas sem-abrigo a conviverem entre si, “bêbedas a gritarem num canto”, e apenas interage com  Hørgården, quando vai ao mercado. À parte isso, “não há mais interação entre os grupos”. Introvertido por natureza, considera que “um dos pontos fortes de viver aqui é que temos a possibilidade de nos misturar em diversidade, mas ainda não vi isso acontecer muito.”

Não partilha o mesmo entusiasmo de Rasmus para área que vai ser um ponto de encontro social para as pessoas do bairro, no entanto, também confessa não estar muito envolvido no processo de renovação do bairro. Considera ser necessário existir um propósito maior para que as pessoas se reúnem e comecem a interagir umas com as outras, “algo em que as pessoas se encontrariam em torno de uma atividade”. “Se for para retirar o parque de estacionamento, colocar um pouco de relva e alguns bancos, não vejo isso a fazer nada.” 

Daniel também concorda com a necessidade de existir um motivo para que as pessoas de  Hørgården passem a usar aquela parte do bairro. Na sua opinião, a abertura de alguns locais culturais, um centro juvenil ou até mesmo “algumas lojas e cafés” pode tornar a área menos isolada, fazendo com que as pessoas sintam que “isto também é o meu bairro”.

Ahmed, por sua vez, mostra alguma preocupação para a gentrificação do bairro, principalmente quando observa os bares de vinho sofisticados ou restaurantes perto da Danish Broadcasting Corporation, fora do bairro. Pensa que o mesmo se vai suceder no antigo celeiro que se situa ao lado do espaço com vegetação desordenada prestes a ser renovado. “Vão apresentá-lo como inclusivo, toda a gente é bem-vinda, mas ninguém nos vai convidar. Vai ser uma coisa de alta cultura que as pessoas de fora vão usar muito.”

O futuro do celeiro ainda não foi definido, mas Rasmus explica que existem várias opções em discussão. Tanto pode ser um espaço de produção artística para os artistas da Fabrikken, como pode ser utilizado pelas escolas e os jardins de infância para workshops da parte da manhã ou ainda um espaço de reunião onde as pessoas podem tricotar ou jogar jogos. As alternativas são várias e nota que os vários grupos diferentes do bairro “não precisam de estar aqui ao mesmo tempo, mas podem estar aqui em momentos diferentes ao longo do dia”.

Rasmus afirma que, na equipa de renovação, o risco de gentrificação “está sob os nossos holofotes”, no entanto, não considera que este seja o caso. “Queremos fazer o nosso melhor para trabalhar o espaço urbano, trabalhando com storytelling e informação, para tentar fazer com que as pessoas que vivem em  Hørgården e nas outras áreas se conheçam e socializem.”

No entanto, Lars Lindegaard Gregersen, artista performativo e consultor artístico da Glimt Amager, uma das organizações sediadas em Sønderbro, considera que o bairro “poderia muito bem terminar dessa forma.” Segundo o mesmo, tudo depende das instituições culturais ou atividades culturais que estão a acontecer “porque se houver uma agenda para tentar que mais do resto da cidade chegue a Sundholm, por exemplo, para ter atividades em Sundholm que são para as pessoas que vivem ao lado, então pode facilmente começar uma espécie de contraste e luta entre os utilizadores de Sundholm que sentem o seu espaço ser invadido.

“Seria uma grande vergonha se as pessoas vulneráveis ​​que estão aqui a todo o momento, sentirem que o seu espaço está cada vez mais pequeno e mais pequeno porque isso criará atrito e isso criará problemas”, afirma o artista que já realizou juntamente com a sua companhia de teatro, espetáculos de circo na rua para as pessoas sem-abrigo em Sundholm. 

Aclamados como um bom público, este grupo de residentes vulnerável não só ficou extremamente feliz pela hora de espetáculo que lhes foi dedicada somente a eles, como também, demonstra, segundo Lars, que esta é uma audiência especial. “Não são uma boa combinação com um público normal porque não se sentem confortáveis a estar com um público normal, porque não sentem que podem ser eles próprios”.  

Simon Bodh Nielsen, artista com estúdio sediado na Fabrikken, mesmo ao lado do espaço que vai ser renovado como um “ponto de encontro social para toda a gente" não considera que o bairro vai ser gentrificado nos próximos anos, no entanto, nota que para que as pessoas se misturarem “têm de ser muito compassivas e dar espaço umas às outras, porque são diferentes.”

Esta renovação urbana que começou com a discussão sobre as “sociedades paralelas” e a inclusão de  Hørgården na lista, ainda não conseguiu quebrar a fronteira que separa Sundholm e  Hørgården. Apesar dos esforços para aumentar a participação das pessoas de Hørgården, os membros do município confessam não conseguir alcançar muito os moradores dessa área e as próprias pessoas de  Hørgården ou não sabem da renovação ou não têm interesse. 

“Se pintarem os edifícios de vermelho ou branco, não importa, sobreviveremos”, explica Daniel sobre o pouco envolvimento das pessoas do bairro. “As pessoas simplesmente habituam-se a esta situação porque foi assim que viveram toda a vida aqui”, onde acrescenta “sinto que há uma grande incompatibilidade entre o município e os diferentes projetos e os assistentes sociais, alguns dos assistentes sociais aqui e as pessoas aqui, não têm qualquer ligação. Não está a funcionar como deveria.”

Na minha última conversa com Rasmus, o arquiteto manteve um tom esperançoso. Do último evento organizado para os jovens do bairro, que Daniel ajudou a dinamizar, conseguiram reunir um grupo de cinco a seis pessoas jovens de Hørgården. Diz que ainda não serão incluídos no grupo de projeto da renovação, mas serão um grupo transmissor dos valores e mensagens de  Hørgården, que possivelmente mais tarde poderão ser incluídos nesse grupo de projeto. 

A fronteira persiste, mas segundo Rasmus há alguns pequenos passos que se têm criado na direção certa. No início do mês de Setembro, a equipa de renovação organizou um evento social com um jantar comunitário no Maskinhallen, um centro cultural do bairro. Cerca de oitenta pessoas participaram e, segundo os seus cálculos, trinta a quarenta dos participantes eram as pessoas sem-abrigo que vivem em Sundholm. 

Todos juntos no Maskinhallen partilharam a mesma refeição. 

Este é apenas o início da renovação urbana de Sønderbro, que, assim como outras antes dela, promete criar um bairro mais integrado. Mas a pergunta persiste: será Sønderbro um exemplo de verdadeira inclusão ou apenas uma promessa semi-realizada?

Reportagem por Bárbara Alves, no âmbito do projeto Come Together, cofinanciado pela Comissão Europeia através do programa Europa Criativa.

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