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O Livro Incompleto  

Um conto da autoria de Onironauta, aluno do curso da Academia Gerador “Desarrumar a escrita: oficina prática”. Este conto foi selecionado para publicação nos canais digitais do Gerador pelo formador do curso, Samuel F. Pimenta

Texto de Gerador

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Como o tempo urgia para os monges copistas, mesmo que muitas vezes demorassem anos a terminar de copiar um capítulo, pensou-se numa tecnologia de vidragem que deixava entrar o máximo de luz solar que destruísse o mínimo dos livros, refletindo a maioria dos raios de volta para a grande estrela, para que as lombadas dos infinitos livros da biblioteca permanecessem visíveis a muitos metros de altitude durante muitos anos e assim facilitar a sua consulta, sem precisar folhear. Não há nada pior que luz solar para a capa de um livro. Pior que isso, talvez só a última página de um bom livro… Ou pior ainda, a única página que sobra de um livro ser precisamente essa, a última.

O monge Amadeo tinha vinte e três anos, mas já tinha copiado mais do que o triplo do seu tempo na Terra: O Alcorão e todos os restantes livros sagrados, o Aleph de Borges, livros de culinária desde o início do paleolítico, Os Maias de Queiroz, O Sonho do Velho Cego, de autor desconhecido, etc. Era um jovem prodígio, um exemplo para toda a Ordem, tal era a sua celeridade e precisão na reprodução de um exemplar. Original ou cópia, só quem realmente conhecia o livro era capaz de julgar. O jovem monge parecia ser muito velho, tamanho engenho e génio, não havia livro algum que não conseguisse copiar.  

Até que um dia, na pilha de livros a trabalhar, encontrou um com o título ilegível, tanto na capa como na lombada e contracapa. Um livro gasto pelo sol, um pesadelo para quem dedicava a vida a reproduzi-los ao seu ínfimo detalhe. Amadeo pegou nele, era extremamente leve. Prontamente abriu-o e só conseguiu ler uma página de outras que ou ficaram comidas pelos raios solares e pelo tempo ou foram rasgadas propositalmente. Nela, as seguintes inscrições:

[...] barata enorme [...] Jesus Cristo [...] “Este é o [...] castigo pelos caprichos do talento.” [...]  

Depois de ler estas passagens, um assombro. Sentiu o ar da biblioteca ficar denso, uma corrente de ar fechou a porta do salão e o chão começou a deslizar e a deixar cair dezenas de livros das suas prateleiras, muitos deles ainda por secar. Amadeo, abalado com a destruição de horas e horas de trabalho, não conseguiu verter uma lágrima, tamanho era o choque. Só conseguiu olhar para o livro incompleto, sem título e poucos fragmentos de página e pensou “Como copio eu o desgaste do sol, o segredo das palavras inexistentes, todas as palavras arrancadas pelo passado?” que era o mesmo que dizer que pensou 

“Como poderei eu reproduzir algo tão incompleto?”. E a partir daí, por cima dos cadáveres de todos os livros copiados, decidiu que esta era a sua maior provação. Sentou-se à mesa, pegou no pincel e nas suas tintas e começou a trabalhar.  

Amadeo começou pela capa, lombada e contracapa, que pouco tinham a dizer a não ser manchas desbotadas de ciano e bolor magenta. Em doze horas já tinha esta parte copiada. Quando se debruçou sobre as poucas páginas que restavam, aí é que começou o jogo, porque todas elas quase diziam alguma coisa, mas nunca o suficiente para se entender.  Os relevos de cada palavra desenhada no papel eram irregulares, gastos, absurdos, ora, era exatamente isso que Amadeo teria de iluminar. As páginas estavam carcomidas por baratas e peixinhos-de-prata, ora, era precisamente isso que Amadeo teria de representar. Provavelmente aquele livro caiu borda fora mas foi salvo por uma donzela erudita, portanto era este acidente de barco que o jovem monge tinha de imaginar para poder melhor copiar. Todos estes detalhes impressos na página escondiam um segredo que só ele, naquela sala da biblioteca do mosteiro de Montecassino, podia desvendar.  

Horas e horas e horas se passaram, já era noite cerrada e nada de Amadeo se ir deitar. Percebeu que ainda estava nas primeiras duas páginas que sobraram, e que ainda lhe faltava mais uma mão cheia para terminar. Entendeu ainda, comparando, que não tinha sido rigorosamente fiel ao original, portanto, como diz o princípio, há que recomeçar. Fez e refez a capa, a lombada e a contracapa, e parecia que nada correspondia, tudo era uma cópia barata de uma ideia de cópia barata. À décima quarta tentativa, acordou com o sol a rasgar-lhe as pálpebras e tinha entendido que adormecera. Por quanto tempo, não sabia, mas o suficiente para que a tinta do livro-cópia se calcificasse no rosto. Tinha estragado tudo, o corpo não aguentou. Odiava quando o seu corpo parecia saber mais que ele próprio, mas não barafustou, logo recomeçou. E copiou, e copiou, e copiou… 

O Sol já tinha trocado com a Lua e Amadeo chegou às páginas finais, e às únicas inscrições legíveis. Quando delineava as palavras com o dedo indicador direito, algo parecia bater, sentiu uma estranha palpitação que vinha do coração até à barriga. Um sentimento de que talvez todos os esforços para forjar a cópia perfeita de um livro estropiado, talvez roubado, deixado ao Deus dará era demasiado exigente para tão pouco tempo, para tão pouco corpo. Começou-lhe a acontecer algo de muito perigoso, Amadeo duvidava acerca da sua própria função.  

Questionou a utilidade do esforço de duplicar algo para o preservar, para o partilhar, para o eternizar. Não seria o Eterno exclusivo a Deus? Porque teríamos de o imitar? Talvez todo o livro, todo o tempo, toda a História, mesmo que cíclica, era como as partículas de pó naquela biblioteca, parecidas entre si, mas inerentemente irrepetíveis. Deteve-se, a processar os seus pensamentos, a olhar para aquela frase, sobrevivente de todos os cataclismas, de todo o abandono e esquecimento. Como é que aquele livro teria chegado até ali? Qual a sua importância para o mosteiro e para a Ordem? Ele procurava provar alguma coisa a alguém? Ou teria sido alguém do mosteiro a testá-lo para chegar até àquele ponto, de absoluto esgotamento?

Percebeu que talvez fosse melhor abandonar esta façanha e ir descansar. Mais importante seria reencontrar a paz no seu trabalho e dedicar-se a arrumar e copiar todos os outros livros derrubados no sismo. Livros normais, com capa, lombada e contracapa, com todas as páginas, completos, imaculados. Ir dormir e restaurar a normalidade.

No dia seguinte, o monge pegou nos poucos livros que não sofreram danos significativos, subiu à longa escada e começou a colocá-los no devido lugar. Quando terminou, olhou do alto para a mesa onde passava horas a fio no seu ofício, avistando, lá longe, escondido pelas duas dúzias de livros agora estragados, o livro incompleto. Sim, não havia como fugir, ele teria de acabar de o copiar, era mais importante do que tudo o resto. Não sabia explicar, mas era em tudo o que conseguia pensar.  

Quando estava a descer as escadas para ir buscar o estranho livro, uma barata enorme passou a ziguezaguear pelos seus pés. O monge ainda tentou segurar-se no corrimão, mas já tinha tropeçado, caído e estava no chão, chão esse que voltara a tremer numa réplica bizarra, parecia mais potente que o sismo inicial. Mais livros caíram, os vidros das janelas próprias para aquela biblioteca vibraram, todas as velas tombaram e começaram a queimar tudo o que podia ser queimado. Amadeo não sentia o próprio corpo, prostrado no chão da grande biblioteca do mosteiro de Montecassino, encarando, estático, todos os milhões de livros copiados ao longo dos anos. O jovem monge tinha dedicado toda a sua curta vida a esta arte de copiar e iluminar livros, documentos, manuscritos.  Todo o seu engenho o levou à estranha obsessão por algo único, irrepetível, aquele livro incompleto, e eis onde o tinha levado: ali, imóvel, observando a barata, que também havia caído. Por um instante, pareciam iguais— ambos derrubados por algo maior do que eles próprios. Sem hesitação, a barata virou-se de carapaça para cima, passou por ele e seguiu com a sua vida. Ao jovem, cheirava-lhe a queimado e notou que o fogo das velas já consumia toda a sua mesa de trabalho, e não tardava a engolir a biblioteca inteira. Tinha de sair dali.  

O monge começou lentamente a sentir o seu corpo e toda a dor que provinha da queda, e, a esforço, levantou-se. Pelo fumo, o ar ali dentro tornava-se cada vez mais rarefeito, parecia que a cada respiração ficava mais zonzo. Ao olhar para as longas labaredas, pareceu ter reconhecido o rosto de Jesus Cristo e entendeu: “Desviei-me do meu propósito, tentando acedê-lo. Tornei-me virtuoso e esqueci-me de onde vim e para onde vou. Este é o meu castigo pelos caprichos do talento.” Lentamente abriu a porta da biblioteca e, antes de sair, olhou para o livro incompleto e deixou-o ser obliterado pelas chamas, juntamente com toda a biblioteca. 


Texto da autoria de Onironauta. Ilustração de Marina Mota.

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