No posfácio da segunda edição de O Fim da História e o Último Homem, Francis Fukuyama sublinha, com inteligibilidade notável, que encontramos nos movimentos migratórios uma prova evidente de que o aumento do nível de vida promovido pelo desenvolvimento económico é um horizonte universalmente desejado. Afinal, defende, o fluxo de migração traça-se, tendencialmente, em sentido único: das sociedades pobres, de oportunidade escassa, para as sociedades ricas, onde mora a esperança, e a probabilidade, de uma vida consistentemente feliz. Neste curso compulsivo, reiterado geração após geração, os milhões de pessoas que convergem nos países desenvolvidos estão, de acordo com Fukuyama, a votar com os pés no crescimento económico, validando-o, implicitamente, enquanto catalisador de bem-estar humano. A realidade observável, não nos esqueçamos, é uma inequívoca manifestação das motivações pessoais mais íntimas.
Genericamente, o argumento da prosperidade, que se expande a partir do acesso a condições básicas pelas camadas mais desfavorecidas da sociedade, é aquele que melhor defende a aceleração capitalista. Porém, embora legítimo, se aceite acriticamente, sem desconstrução séria, mascara um rasto de erosão humana, social e ambiental, que acaba ignorado ou, pior, justificado como consequência inevitável do progresso.
Em parte, a responsabilidade de contrariar esta espiral descendente impulsionada pelo ímpeto capitalista recai, pelo menos de acordo com os princípios ideológicos da esquerda moderada, sobre a alçada da regulação estatal. A mesma regulação que, do lado oposto, a bancada do liberalismo económico pretende mínima, para que a mão invisível do mercado opere na máxima eficiência. Não desresponsabilizando, nem desvalorizando, o papel do Estado — que é um tema em si mesmo, independente do que aqui quero desenvolver —, acredito, contudo, que as dinâmicas que empurram o mercado para este paradoxo de prosperidade-erosão, as dinâmicas que os discursos anticapitalistas assumem como irremediavelmente associais, ineducáveis e, a prazo, autodestrutivas, não são totalmente incorrigíveis. Poderão ser até, pelo contrário, parte de uma potencial solução capaz de rebater a normalização conformista, essa, sim, a principal culpada pela perpetuação dos efeitos nocivos produzidos pelo desenvolvimento capitalista. Mas, para tal, é condição inegociável que o papel activo e consciente de cidadania que serve o ideal democrata seja também manifestado, muito resolutamente, naquele que é o verdadeiro motor da economia: o consumo.
Votar pelo consumo
É comum encontrarmos, na crítica genérica ao capitalismo, o consumidor apresentado como vítima passiva, e altamente manipulável, de um sistema abstracto, mas manifestamente opressor. É, pois, sobre uma pretensa apatia generalizada que a máquina capitalista — e a sua, assim imoral, persecução do lucro — corrói o espírito humano, o espírito social e, por fim, periga a democracia.
Não refutando tais consequências — até porque são várias as evidências nesse sentido —, a premissa base do consumidor fatalmente passivo, entregue a um destino sobre o qual não possui o mínimo controlo, parece, nesta linha de raciocínio, ser aceite, muito displicentemente, como condição inabalável. Como se o ser humano, no papel de agente de consumo, perdesse irremediavelmente faculdades tão intrínsecas como a capacidade crítica individual e o próprio livre-arbítrio. Ora, embora uma certa dormência seja inegável — bem como terrificamente preocupante —, fazer dela uma condição irrevogável é, quanto a mim, uma proposição falaciosa. O humano-consumidor e o humano-cidadão, personagens teóricas distintas, são um e o mesmo indivíduo, um e o mesmo substrato existencial. O lugar do consumo não é, portanto — ou não deveria ser, pelo menos —, um território despido de cidadania.
Voltando a Fukuyama, a ideia de votar com os pés — de verbalidade visual invejável —, deve recordar-nos que as escolhas informais, para lá da democracia processual, têm impacto substantivo no desenho da sociedade. Tal como os migrantes votam no desenvolvimento económico através do seu próprio movimento migratório, cada um de nós pode, no papel de consumidor, votar diariamente numa sociedade melhor. Como? Através das marcas que privilegiamos e através das marcas que condenamos. O poder do consumidor-cidadão, ou do cidadão-consumidor, expresso pelo acto de compra consciente, é o mecanismo mais capaz de refrear as externalidades negativas que as dinâmicas capitalistas não domadas tendem, inegavelmente, a criar. É a compra consciente — o voto pelo consumo — que valida e recompensa as organizações socialmente comprometidas, e, por outro lado, pressiona as restantes a estar à altura de uma democracia desenhada à imagem do seu cidadão.
Ora, é precisamente aqui — na formação do cidadão sobre o qual se decalca a doutrina democrática — que a actividade cultural tem, pois, uma das suas funções sociais mais sérias e mais relevantes. Para lá da dimensão do entretenimento, de proveito imediato e efeito fugaz, é a edificação de um espírito humano crítico, consciente, plural, apostado no projecto comum, não na excessiva privatização do interesse próprio, o tributo mais profundo que a Cultura presta à sociedade. Um tributo cujo eco no tal consumidor-cidadão, directo ou por contágio, é natural e irrefutável. A Cultura é, acredito, a força que melhor alimenta aquilo que Sousa Dias chamou de o poder da percepção colectiva do intolerável, imprescindível a um etos capitalista saudável (idealizado, talvez ainda, mas não de todo impossível). Não me canso de repetir, um público consciente gera um mercado consciente. Ao contrário do que sugeriu o historiador israelita Yuval Noah Harari, a mão invisível não tem de ser também cega.
Ironicamente, a Cultura, uma das áreas mais ameaçadas pela dilatação excessiva dos princípios do mercado livre, é, com contornos de excelência, das mais habilitadas para evitar que esse mesmo mercado livre impluda sobre si próprio.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.