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Texto de Leitor

Carta do Leitor: N316

Estávamos algures na estrada nacional 316 e o abraço do sol de inverno iluminava os…

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Estávamos algures na estrada nacional 316 e o abraço do sol de inverno iluminava os nossos rostos, contrastando com as pequenas crostas de gelo que apareciam onde a luz não chegava.

O carro ia dando sinal do perigo do piso enquanto serpenteava pelas curvas e contracurvas características das estradas transmontanas.

Ao som da “Heroes” do David Bowie cantada quase em sussurro pelas nossas vozes e acompanhada pela rádio, reparava na paisagem que era já de uma floresta despida pronta para o rigor do inverno que timidamente se instalava.

De longe a longe, éramos cumprimentados pelo olhar discreto, mas curioso, daqueles que, resistindo ao frio, procuravam a sorte na apanha do ouro transmontano, a castanha. Para muitos, uma das maiores fontes de rendimento do ano, para os restantes uma forma de se reconectarem com as suas raízes e as memórias que as mantêm vivas.

Entrávamos agora para o troço municipal, desgastado, com pequenos cortes e marcas como se da pele de um velho se tratasse. Em silêncio perguntava-me quantas histórias, à semelhança do velho, esta estrada esquecida num pequeno canto de Portugal poderia ter para contar. No banco de trás, começava a preparação da festa de passagem de ano, enquanto à nossa frente, no fim da íngreme descida, surgia o pequeno aglomerado de casas. A possibilidade de reunir, por uma noite, alguns amigos que estavam agora dispersos pelo país animava-nos e tornava acolhedora a entrada na aldeia onde casas típicas de pedra se misturavam com construção mais recente, separadas por uma estreita estrada dando a sensação que abraçavam o carro enquanto prosseguíamos viagem.

Em breve estaríamos em terra batida. No final, estava o nosso destino.

Mais uma curva completamente gelada, que fez com que o painel de bordo do carro acendesse com tantas luzes que, por breves segundos, o transformaram no cockpit de uma nave espacial. Do lado direito da estrada, estava um pequeno largo. Decidimos parar.

Saímos do carro e imediatamente percebemos que não estávamos vestidos para a ocasião. O rigor do inverno transmontano começava a fazer-se sentir, mas nada como boa disposição para aquecer o espírito. Afinal, não tínhamos feito a viagem para nada e faltavam apenas 150 metros.

Íamos já a meio da descida quando, por detrás de uma primeira escarpa, apareceu uma torrente de água que corria em direção ao fundo do vale, acordando toda a paisagem que a envolvia.Parámos por um breve momento para apreciar a beleza da imponente força da natureza que separava a íngreme encosta que acompanhava o vale. Decidimos tirar algumas fotografias antes de seguir em direção à cascata, mas nem a melhor câmara de smartphone faria jus a este cenário. Pelo menos nas nossas mãos. Após duas ou três fotografias rápidas para memória futura, seguimos caminho.

Descemos até ao fundo do vale onde nos esperava uma subida montanhosa ao longo da queda de água, naquilo que se assemelhava a uma paisagem retirada de um livro de Tolkien. A força da água a embater contra as pedras que marcavam o seu caminho tornava qualquer comunicação entre o grupo difícil, no entanto, quando estamos perto de um fenómeno natural tão belo, puro e implacável há um sentimento de pertença e completude que se apodera de nós. Por momentos, o tempo parece ficar suspenso enquanto olhamos hipnotizados para o fluxo contínuo de água a sair do topo da montanha. Qualquer outro pensamento torna-se irrelevante, sendo substituído por uma calma estoica e uma vontade de desafiar o limite da proximidade aos milhares de litros de água que seguem o seu caminho. Passado cerca de vinte minutos, decidimos voltar; a luminosidade começava agora a desvanecer e em breve as estradas voltariam a gelar.

Subíamos agora as apertadas estradas da aldeia, enquanto à nossa volta se viam ,de quando em quando, pequenos grupos de pessoas em volta de carcaças de porcos suspensas por cordas apertadas a traves. Estávamos, afinal, na altura do famoso fumeiro transmontano.

Este espírito de comunidade desperta em nós a consciência de que vivemos afastados, fechados na nossa bolha social num país altamente litoralizado e centralizado em áreas urbanas. Nestas, grande parte da realidade crua das nossas tradições é apagada ou filtrada em troca de um produto sintetizado, empacotado e embelezado por equipas de marketing para, posteriormente, ser distribuído em massa nas superfícies comerciais.

O fumeiro, tal como tantas outras tradições do nosso país, implicam uma ligação ao reino animal, à cadeia alimentar, a uma realidade de que, enquanto humanos, nos fomos afastando e que hoje nos choca. No entanto, no revés da moeda, continuamos a amar a nossa portugalidade exportada num pacote bem cuidado e validado através de uma etiqueta “made in Portugal” anunciada num reclame ao som de fado.

As tradições parecem-nos belas, mas ao mesmo tempo, quando tomamos consciência do que muitas destas implicam, as pessoas envolvidas nas mesmas tornam-se, injustamente, selvagens. Numa época em que prezamos a ligação ao meio ambiente, a diminuição da poluição e o respeito pelos animais, esquecemo-nos que estes “selvagens” são quem vive em maior contacto e sintonia com o nosso lar. Já para não falar de que são elas quem melhor cuida das espécies autóctones das nossas regiões.

Estas pessoas são a última fronteira de conservação de tradições regionais tão importantes para não perdermos a ligação às nossas raízes.

A emigração em massa e o desinvestimento progressivo no interior do nosso país tornam esta população isolada, envelhecida e dependente de agricultura de subsistência e empregos precários. Preservar e dinamizar estas comunidades, não é só necessário mas urgente.

No entanto, apesar de todas as dificuldades, somos cumprimentados por um sorriso ou um aceno de despedida enquanto deixamos para trás o povoado.

O sol refletia já no espelho interior do carro, escondendo-se lentamente atrás das montanhas. Entrávamos agora na N206…em breve estaríamos de volta à cidade.

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Texto de Pedro Pousa

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