Nos dias de hoje, em que muito se fala de inclusão e acessibilidades, podemos pensar que o mundo está, de facto, acessível a todos. Ou, pelo menos, simplificado. A verdade é que nem uma coisa nem outra.
Isto acontece não por falta de tecnologias, equipamentos ou meios disponíveis, mas muitas vezes porque a maioria vê o mundo da sua perspetiva normalizada, sem espaço para alguma flexibilidade para os utentes dos espaços ou serviços.
É impossível revolucionar tudo de forma que haja maneira de todos encaixarmos de forma perfeita nos edifícios, ruas, lojas, transportes, mas sem dúvida que é nos pormenores que se faz a diferença. E os pormenores muitas vezes são muito simples.
A evolução do ser humano também passa pela sua autonomia ao longo da vida. Vivemos em sociedade, e claro que é suposto haver sempre uma interajuda entre as pessoas. Viver em comunidade.
Mas se pudermos fornecer às pessoas melhores condições, para que dentro dos diferentes cenários possam ser o mais autónomas possível, teríamos sociedades mais aptas e abertas à diferença, sem apelar a alguma compaixão que nos torna, a nós, que temos uma condição diferente, dependentes e submissos (por vezes) do outro.
As adaptações existentes para as pessoas com displasias ósseas dependem muito, desde logo, do dinamismo da família nuclear. Essa motivação pode, desde a infância, proporcionar às crianças meios para que nos infantários e escolas possam ter o conforto e o à-vontade para poderem prosseguir os seus estudos. Recordo que a minha mãe levou para a minha escola primária um quadro preto, daqueles que costumamos ter em casa, para eu poder escrever no quadro também, na minha sala de aula. Não é uma solução difícil e permitiu-me, sim, sentir que também podia ir ao quadro.
Fiquei fascinada também quando, já adulta, me falaram na associação espanhola sobre cadeiras especiais, que permitiam ter um apoio para os pés — o que, para nós, faria toda a diferença. E lembro-me de ter pensado: isto na escola teria ajudado muito a que eu me sentasse confortável. Novamente, reafirmo, são os pormenores que fazem a diferença. Não é preciso deitar, muitas vezes, um edifício abaixo.
Mas por falar em construir edifícios, atualmente ainda me deixa admirada como há tantos pormenores na construção de edifícios de que ainda ninguém se lembra, porque são… pormenores. Mas para pessoas com displasias ósseas, mudam completamente o seu dia a dia. Tal como o sensor para o cartão para entrar nos edifícios, não é preciso estar tão alto. Ninguém vai ficar com dores nas costas se passar o cartão mais abaixo.
Na era da pandemia, o exemplo mais gritante foram os dispensadores de álcool-gel. Quantas vezes corri o risco de me cair álcool-gel na cara, quando apenas bastava ter tudo um pouco mais baixo. O tamanho afinal importa! E basta apenas mudar uns centímetros.
Sempre fui habituada a desenrascar-me, a falar, a pedir, mas acredito que haja muitas pessoas que se sintam mais isoladas por serem mais tímidas, por exemplo. Claro que para viver em comunidade também é preciso um trabalho interior de irmos à luta. Sem nos fazermos ouvir, não vamos conseguir fazer com que nos descubram no meio da multidão.
Para isto é também essencial o papel das associações como a ANDO – Associação Nacional de Displasias Ósseas. Dada a diversidade de displasias ósseas, a informação sobre possíveis adaptações, como e onde fazer e tratar disso é ainda escassa. Uma associação permite, para além da partilha de experiências pessoais mais próximas de cada um de nós, agregar uma série de informações, quer sejam logísticas, jurídicas ou fiscais. E todos temos a ganhar com a nossa participação nas associações, porque é aqui que se podem identificar os tais ditos pormenores. Fazem toda a diferença.
Na nossa vida pessoal, pode ser mais fácil ter as coisas adaptadas. Adaptar, por exemplo, a cozinha e a casa de banho proporciona desde logo a sensação de que estamos em NOSSA casa. Adaptar o carro já é atualmente muito mais fácil do que há uns anos, mas depende muito ainda da região geográfica onde vivemos e de sabermos os direitos que existem. E claro, da demora longa e inexplicável dos pedidos de juntas médicas para podermos pedir um atestado que confira direitos que estão na lei!
Muitas pessoas podem ter receio de embarcar no mundo do trabalho por acharem que não há condições para poderem trabalhar de forma adequada ou por acharem que não serão aceites. Hoje em dia, ainda há, infelizmente, casos de discriminação. Mas nada é impossível se houver cooperação entre todos. Felizmente foi isso que encontrei no laboratório de investigação onde fiz o meu estágio e prossegui a minha vida profissional. Talvez seja esse o desafio maior: encontrar cooperação numa sociedade ainda muito individualista. Mas precisamente estas chamadas de atenção, falarmos, pertencermos a uma associação, fazermos atividades, pedirmos os nossos direitos, podem ajudar a que os vários pormenores que fui descrevendo se tornem mais claros para todos.
Não precisamos de compaixão, precisamos de funcionalidades. Flexíveis. Não podemos exigir um mundo à nossa altura, mas podemos encontrar a flexibilidade necessária para viver com qualidade de vida.
- Sobre a Carolina Lemos -
Nascida no Porto em 1979, licenciou-se em Biologia e doutorou-se na área da Genética e Estatística. Atualmente, é professora no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, pois ensinar é uma das suas grandes paixões. É investigadora na UnIGENe, IBMC, da Universidade do Porto. É ainda sócia da ANDO – Associação Nacional de Displasias Ósseas e membro da sua comissão científica. É a cronista convidada na sequência da reportagem «Eu é que me adaptei à casa, adaptei-me à rua, adaptei-me a tudo».