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A Palavra Doutro: Gustavo Rubim com pretexto de Pessoa

In contra. Colisão entre existências distintas No ponto de encontro de um tempo desencontrado, um…

Texto de Raquel Rodrigues

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In contra. Colisão entre existências distintas

No ponto de encontro de um tempo desencontrado, um ecrã

Deixo a memória de um encontro. Um encontro acontece sempre sobre a memória de outros. Do diálogo entre as imagens que nos deixam, surgem renascidos em formas novas. Pela perda, pelo fragmento, pela imperfeição, acontece a possibilidade de gerar, de regenerar o nosso estar no mundo, porque só o perdido, o fragmentado e o imperfeito se podem ligar. É por isso que falamos e somos falados “na palavra doutro”.

De: Gustavo Rubim

Enviada: 11 de maio de 2020 13:45

Para: Raquel Rodrigues

Assunto: Re: crónica A Palavra Doutro

Olá Raquel, como está?

Já estava a recear que insistisse, depois destes meus dias sem resposta. Recear porque, na verdade, ainda não tinha escolha feita ou, pelo menos, feita de modo seguro. Vou dizer-lhe em que pé estão as indecisões.

A primeira hipótese que me surgiu foi escolher um dos prosadores de que gosto muito e sobre os quais quase nada disse, salvo nalgumas aulas. Hesitei entre Jack London e Joseph Conrad (deixei de fora Robert Louis Stevenson, porque já há muito tempo que não releio A Ilha do Tesouro e agora falta-me tempo). Depois comecei a fixar-me no London e em alguns dos livros dele sobre os quais tenho falado com uma amiga-leitora recente e muito mais jovem do que eu: O Apelo da Selva, O Cruzeiro do Snark, Vagabundos Cruzando a Noite...

Entretanto, olhava para o seu convite e lia «pode ser um conjunto de poemas», etc. E começou a misturar-se a sua crónica com um livro que estou a organizar dedicado ao centenário da publicação da Clepsydra, de Camilo Pessanha. Pensei: fazia sentido, estamos em 2020, juntávamos as duas coisas, fazíamos mais uma visita ao mundo estranho do Pessanha e do seu estranho livro único. E logo se via o que dali saía, entregando as coisas na mão de Deus, digamos assim.

Já vê que o ponto comum a estas duas ou três hipóteses é irem todas parar à mesma época: as primeiras décadas do século XX, também marcadas pela I Guerra Mundial, acontecimento pelo qual desenvolvi uma certa curiosidade nos últimos anos, traduzida em muitas leituras históricas e literárias. E pelo aparecimento de Pessoa nas letras portuguesas, ali por 1912, muito obcecado com guerras culturais onde ele via Portugal converter-se num protagonista europeu (o que, para ele, significava: mundial).

Acha que se consegue fazer alguma coisa com este imbróglio?

Obrigado pela sua paciência, Raquel!

Um abraço e saudação especial,

Gustavo Rubim

De: Raquel Rodrigues

Enviada: 11 de maio de 2020 15:23

Para: Gustavo Rubim

Assunto: Re: crónica A Palavra Doutro

Estou bem, muito obrigada! Também gostaria de saber como está…

Não existe nada desligado. Confio plenamente no seu aparente imbróglio. Parece-me muito interessante navegar na relação entre as obras e o seu período histórico.

Peço desculpa por não o ter deixado à vontade com o tempo, que é o que mais me custa nesta actividade. Se, entretanto lhe surgir mais alguma possibilidade, sinta-se confortável para comunicá-la.

Então, procurarei ler um dos três livros referidos de Jack London (penso que não conseguirei ler os três), Clepsydra e os textos de Pessoa, que aguardo a indicação bibliográfica. Espero conseguir! Se o Professor tiver alguma obra digitalizada, que tenha utilizado para alguma aula, poder-ma-ia enviar, por favor? Estou em Santarém e a biblioteca ainda está encerrada.

Poderíamos agendar para o fim da próxima semana ou para o início da seguinte?

Agradeço-lhe imenso a dedicação e a amabilidade.

Com estima e gratidão, um abraço,

Raquel

Gustavo Rubim foi meu professor no mestrado em Estudos Portugueses. Esta conversa, tal como as aulas, partiu dos textos para o mundo. De repente, já não estávamos nas páginas, mas não as esquecíamos. Talvez seja esse o gesto da leitura, estender o branco das margens.

Agora, soube que o Professor encontrou a literatura quando tinha 14 anos, através da sua professora de Português, Cidalina Carvalheiro. “Foi a pessoa que me ensinou que, com livros, nunca se trabalha de mãos vazias. Lê-se sempre com o lápis na mão, o que, para mim, era uma novidade.” Foi por esta razão que Gustavo lhe dedicou o livro de ensaios Arte de Sublinhar, publicado em 2003. Este movimento de aproximação continuou com o professor de português e latim, Francisco da Silva João, e com o professor de filosofia, Joaquim Alberto, de quem se tornou amigo. “Foi com ele que fui assistir, nada mais nada menos, a uma conversa do Jorge Luís Borges, em Cascais. Ele tinha a informação de que o escritor estava cá e que ia dar uma conferência de imprensa meio escondida.” Apesar da dúvida em relação a qual destas áreas do saber, que lhe chegaram de forma tão afectiva, entregar a sua vida, respondeu com a literatura.

Durante a investigação, no âmbito do doutoramento, confrontou-se com os textos de Camilo Pessanha sobre a China. Nas pesquisas realizadas para analisar a diferença entre as escritas chinesa e ocidental, encontrou o paleoantropólogo André Leroi-Gourhan. “Gourhan tinha uma característica que eu descobri em vários antropólogos. Escreve muito bem, tem uma prosa brilhante. E deu-me uma coisa que já tinha perdido com o excesso de literatura e filosofia, que é o contacto com coisas mais terra a terra.” Esta afirmação anuncia o teor dialógico das suas reflexões, onde o gesto predominante é a abertura, a saída da literatura com o sentido de a encontrar.

Gustavo apercebeu-se da relação entre literatura e antropologia e levou-a para casa. “Há uma parte da antropologia que tem uma componente de ficção. É preciso elaborar, não apenas uma teoria, mas uma ficção acerca de como a vida dessas personagens humanas terão sido. (…) A imaginação, para um antropólogo, é fundamental. Um paleoantropólogo, sem imaginação, não faz nada. É o primeiro traço em comum com a literatura. (…) Há uma ligação directa com o que chamamos a ideia moderna de literatura, que começa com os românticos, no século XIX, e a maneira como faço a historiografia da disciplina, que começa precisamente em 1800 com o texto de Joseph-Marie De Gérando, um guia de observação de povos exóticos, estranhos ao ocidente. Esse conhecimento do outro, em relação ao ocidente, é contemporâneo da ideia de literatura e as ligações são muito grandes. Uma das coisas fundamentais nesse texto é a importância de escrever, de aprender a língua do outro. A antropologia, como a literatura, é um fenómeno muito ligado à tradução e é um fenómeno de escrita, de como se escreve, se observa. Não conheço nenhuma outra área que tenha esta consciência do laço entre conhecimento e escrita.”

Também Fernando Pessoa considerava inseparável a relação entre literatura e sociologia (termo equivalente a “antropologia”, para Rubim), que defendia como directa, numa lógica determinista. Nos textos escolhidos por Rubim, “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”[1], “Reincidindo”[2], “A Nova Poesia Portuguesa No Seu Aspecto Psicológico”[3], “Uma Réplica ao Snr. Dr. Afonso Coelho”[4], e, Pessoa justifica que a literatura é um indicador sociológico, informando sobre o estado da nação. Para o autor, “uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito que, por ser comum a esses escritores, deve, forçosamente, ter raiz no que de comum eles têm, e isso é a época e o país em que vivem ou em que se integram.” A “vitalidade de uma nação” corresponde à “exuberância da alma, isto é, a sua capacidade de criar (…) novos moldes, novas ideias gerais para o movimento civilizacional a que pertence.”[5] A argumentação do escritor sustenta-se na comparação do caso de Inglaterra e de França, observando as relações entre a qualidade da poesia e a do momento político, em três períodos históricos, compreendidos entre os séculos XVI e XIX. Conclui que os melhores momentos literários se caracterizam pelo forte espírito nacional da poesia e antecipam áureos momentos políticos e sociais. Este percurso visa responder à tese de que estava a surgir uma nova poesia portuguesa, no seio da qual emergiria um Supra Camões, que faria de Portugal o futuro da civilização europeia.

Gustavo rejeita um determinismo, uma previsibilidade, entre as duas experiências. Para além disso, considera que a literatura é “por tradição, transfronteiriça”. Contudo, reconhece que tais textos são datados. A própria revista onde foram publicados, A Águia, é de cariz nacionalista. “São textos contemporâneos da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra entre impérios transforma-se, nos textos de Pessoa, em guerra entre impérios culturais. (…) É um discurso político que articula uma espécie de política literária, mas que está dependente da ideia de nação e de império, que é uma marca daquele período. Agora, que a literatura tem sempre uma dimensão sociológica, é inevitável. É uma instituição social, com características muito peculiares, que estão ligadas directamente à materialização daquilo a que chamamos liberdade de expressão. Estamos mais habituados a ver liberdade de expressão como dizer o que se quer, mas não é isso. Do ponto de vista literário, tudo pode ser dito. Isso é um princípio que só tem expressão total, do ponto de vista da linguagem e dos discursos, na literatura. (…) Isso funciona para lá dos textos literários, funciona socialmente. É um espaço que, enquanto existir socialmente, cria uma possibilidade política e expressiva que nenhuma outra instituição garante.”

Os cálculos de Pessoa não tiveram o resultado que apontava e que nem chegou a ver. Passaram mais que duas ou três gerações, o tempo que estimava para a literatura preparar a política, mas o brilho da poesia do século XX coexistia com uma ditadura, que procurava secar o pensamento e fazer desaparecer o pão. Como este tempo gerou tais poetas? Ou, talvez, como tais poetas foram gerados neste tempo? “É preferível pensarmos que é o acaso. Há coisas que podemos notar. Por exemplo, para o caso do século XX português, não sei se uma explicação boa é o facto de termos tido um século XIX fraquinho. (…) Portanto, o século XX ainda tinha espaço para aparecer uma poesia moderna forte. Tínhamos uma cultura poética muito diminuída. Com Pessoa, Almada, Sá Carneiro, o próprio Teixeira de Pascoaes, havia possibilidade de inventar poeticamente espaços inexplorados.” Se, por vezes, a criação vem do vazio, noutras vem da “exaustão”. Rubim refere que, no final do século XX e no início do XXI, a repetição, que é uma prisão, impediu a poesia. Todavia, a nova geração de poetas, que, no seu parecer, começou a surgir há cerca de 10 anos, “formada, sobretudo, por mulheres”, “ainda pouco reconhecida”, rebentou com o código poético que lhe era anterior. “Foi uma geração que se libertou.”

Já não há correntes. “Acho preferível ir-se conhecendo individualmente. Na maior parte dos casos, não são autores que prometam fazer uma obra contínua. São autores de um livro, dois, que são claramente bons, surpreendentes, poéticos, no sentido que são inesperados, exploram o que nunca tínhamos visto. (…) A verdade é que produzem ali um acontecimento. Tivemos vinte anos de poesia em que não aconteceu nada. Criaram-se falsos acontecimentos. Criaram-se eventuais ideias de que havia uma corrente, um movimento, mas, do ponto de vista poético, não havia nada relevante. O ambiente torna-se criativo quando as pessoas começam a escrever como lhes apetece. Não é fácil explicar porquê. Pessoa, agora, teria pouca sorte quando quisesse falar de nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. Falhar-lhe-ia aquilo que tinha em abundância no início do século XX, que era essa noção de que há uma corrente. Havia um grupo de poetas que se conseguia identificar, que escreviam todos, mais ou menos, na mesma direcção e, portanto, funcionavam, mais ou menos, em grupo e como geração.” Porém, Gustavo reconhece que se pode identificar um “movimento editorial”, pois as obras da nova geração de poetas são acolhidas por editoras pequenas, que editam um número reduzido de exemplares. Este aspecto reflecte a individualização e fragmentação, que caracteriza a nossa contemporaneidade.

Porque tudo está dentro da vida, Gustavo vai realizando um exercício de sinalização das ligações, principalmente no que diz respeito à política contemporânea e ao caso particular do Brasil. Por vezes, comenta que se está a afastar do sentido da nossa conversa, que começou com Pessoa. Mas, o que seria o encontro sem imprevisibilidade? E não é isso a poesia? Caso contrário, estaríamos numa reunião da empresa, onde procuraríamos não falhar um ponto. Na verdade, perdi o guião logo no início.

Enquanto que as forças políticas e económicas visam a massificação, a literatura não tem intenções, não aspira ao domínio, não apresenta uma verdade, não quer produzir para conduzir. Fica nessa zona de resistência sem militância, nessa margem branca, onde não existe senão procura e pobreza e, cada vez mais, o caminho que cada um (des)tece, sabendo que não chega. Não se fia, desfia(-se), deixando a realidade solta e dispersa, e é precisamente o contrário que o poder ficciona, a vida compacta e igual, sem foras nem falhas, que facilita o exercício de controlo. “Estamos muito sujeitos à manipulação de informação, feita por organismos específicos e com o objectivo de atingir massas. É muito fácil de fazê-lo através das redes sociais. Já temos, hoje, uma história de manipulações bem-sucedidas politicamente, através da criação de histórias falsas, que criam ambientes particularmente difíceis, tensos. Num período de utilização de informação para efeitos de massificação, não é um conjunto de pessoas individuais, mas uma multidão que partilha o mesmo tipo de coisas e que se reconhece nessa partilha.

A poesia e a literatura funcionam numa espécie de alternativa a essa coisa gregária, por afirmação de diferenças mínimas. A diferença mínima é a assinatura pessoal. Continuamos à procura dela na poesia, excepto quando estamos conduzidos pelo fenómeno dos best sellers. Enquanto estivermos numa economia de mercado, isso vai continuar a acontecer. Portanto, é melhor não nos agregarmos, senão vamos abafar o que há de individual em cada um, o que cada um vai descobrindo com o seu próprio caminho, com as suas escolhas, preferências. O mais interessante é o que há de individual, por muito que o individual seja ínfimo, pouco influente. Mas não interessa, porque a influência não é o critério, é só importante para os influencers, que são um fenómeno das redes sociais, onde só conta uma quantidade gigantesca de likes. Se não tiverem essa quantidade, não são influencers, não influenciam. A influência, aí, serve um fim económico, porque eles sustentam a actividade publicitária. A literatura e a poesia permanecem num mundo que quer permanecer indiferente a isso. (…) A literatura tem uma função de contraponto. A literatura, mantendo-se à margem disto, é como se criasse sozinha uma espécie de utopia, um espaço utópico, onde ninguém nos quer influenciar.” Noutras áreas artísticas, entra a lógica de mercado e, muitas vezes, os objectos vendem-se em valores elevados e há quem se sustente exclusivamente do exercício da sua arte. Mas os poetas não têm bolsos. “Os poetas nem se querem vender. Temos um reino de discurso que vive de marketing. Entramos numa livraria e há lá um cartão com a silhueta de um autor em pé. A poesia não permite isso, o teatro não permite isso. Mas o romance, a ficção, sim, vendeu-se muito, tornou-se um fenómeno da sociedade de consumo.”

A poesia pode ser resistência, pela via da atenção, a do autor em relação ao que acontece no seu diálogo com o mundo, que é a sua percepção, e a do leitor em relação ao poema. Esta atenção não se separa de uma forma de estar, necessária para que se constitua um contrapoder. É a atenção que permite a vigia. É uma forma de visão, e a manipulação das massas alicerça-se na cegueira, que ela própria produz. Por isso, o gesto do poeta é desconcertante, é da ordem da perda, porque não do poder. “Nesse aspecto, o diagnóstico de Pessoa acabou por estar certo, a poesia não é popular.” Simultaneamente, ao desenvolver a ideia de Supra Camões, entra na lógica contrária, manifestando o desejo de domínio da situação cultural.

Os poetas já não estão aí. Por isso, Gustavo Rubim aponta que esta geração está a fazer da modernidade “um período museu”, a “pô-la na história”. Reconhece que continuamos a olhar Pessoa como um “revolucionário”, esquecendo que não apareceu do vazio e que, em alguns aspectos, continua uma tradição que passa por determinadas noções oitocentistas, nomeadamente de “raça”. O rompimento desta visão, dilatou-se com a possibilidade, actual, dos poetas partilharem poesia através das redes sociais. “Há uma parte da internet que é literária. (…) Há pessoas que têm o talento de fazer do seu mural de Facebook algo que vale a pena ler. A escrita generalizou-se. O meio digital não é hostil à literatura, mas é hostil à centralidade da literatura. É uma zona em que a literatura existe.”

“Uma boa definição da literatura devia dizer: a literatura é antropológica. No centro da literatura está a preocupação com a humanidade.” A atenção reside aqui, no ser humano, no seu estudo. Por isso, é importante que não ocupe o centro, mas a margem. “A literatura não conta histórias entre objectos. Uma fatia muito grande da actividade literária dedica-se a observar, estudar, imaginar relações humanas, mesmo que não existam, como as famosas distopias que foram   produzidas ao longo do século XX. Mas são mundos humanos.”

Notamos que os períodos onde a desumanização era o processo para se atingir um ambicionado estado de coisas, tiveram respostas literárias, por vezes, através do testemunho, onde a dimensão social da literatura é claramente assumida. Recordámos Se isto é um homem, de Primo Levi. Foi-me apresentado pelo professor Gustavo e recordo-me de o levar como referência para o diálogo onde sempre me reconheci. Escreve-se para não se perder a humanidade.

 A necessidade de escrever também é uma necessidade de transformar? – perguntei. “Acho que, nalguns escritores, claramente. É uma necessidade de escrever para mudar, modificar por uma estratégia que não tem de ser, necessariamente, a da tomada de consciência, mas que, muitas vezes, implica trazer a um plano visível coisas que não falamos e que o nosso quotidiano omite. Eles trazem-nas à superfície de uma maneira quase escandalosa. Quando Sade escreveu, de certeza que o discurso, seu contemporâneo, sobre o sexo não era aquele que ele queria. Trata-se de operar uma mudança de percepção. Coisas que estamos tão habituados, que nem damos por elas, podem ser percebidas de uma forma completamente diferente e, portanto, a própria estranheza da percepção da forma nova de percepção, só por existir, muda o mundo.”

Mas também transformar-se a si mesmo? Ou não tem que ver com o que não basta? – continuei. “A escrita tem bastante a ver com o que não basta. O que para o escritor não basta é o eu. A escrita transforma o eu porque o leva para regiões onde não está naturalmente. Muitas vezes, esse pode ser o propósito principal: escrever para me mudar a mim mesmo. Claro que isso tem uma expressão básica, transformar-me em escritor. Há aqueles escritores que decidem, como Herberto Hélder, que o começo da obra é o começo por mim próprio. É a minha experiência que conta. (…) Não posso simplesmente transformar-me num autor e cumprir um papel social, público, de ser um autor. Mesmo correndo o risco de os outros não reconhecerem aquilo que um autor faz ou deve fazer, começo sempre por mim próprio, a minha experiência exterioriza-se, fica transformada num fenómeno exterior a mim. Essa transformação, essa exposição, ex-posição, transforma o que já existe, porque passa a existir uma coisa que não existia, a minha experiência torna-se pública e transforma-me a mim, porque deixo de ser aquilo que vive reservado em mim mesmo. (…) Mas há outros escritores cujo começo é por outros. Mas, mesmo quando eu decido aprender com outros, essa aprendizagem transforma-me a mim próprio.”

Então, há morte do autor? Esta questão, que Roland Barthes formula a partir de Mallarmé é paradoxal para Gustavo. Se, por um lado, pode ser uma forma de o autor se impor, por outro, pode ser uma forma de desaparecer para dar lugar ao leitor, seja porque é isso que acontece na leitura e interpretação que se dão, geralmente, na ausência do primeiro, ou por motivo da imprevisibilidade do processo de escrita, muitas vezes até para o próprio. Neste desaparecimento, vê uma espécie de vocação e de acto sacrificial. “A decisão de escrever atribui-nos uma espécie de missão, passamos a ter uma finalidade na nossa vida que não tínhamos antes de começar a escrever. Há pessoas que estão vocacionadas para cumprir uma missão. Há pessoas que estão vocacionadas para não estar fechadas em si próprias, têm um talento particular para cumprir qualquer coisa que está para além da vida delas. (…) Nesse sentido, há uma maneira de recuperarmos o texto de Roland Barthes, que é pensar que, na verdade, se um escritor pensa que escreve para si próprio, está completamente enganado. (…)  O que o texto vai abrir é uma relação com os leitores. Isto é defensável. Neste sentido, assim que começa a escrever, começa a desparecer. Na frase de Barthes, mais dramática, começa a morrer. Herberto dizia aos leitores ‘obrigado por acompanharem a minha morte’. (…) Há quem diga que a literatura tem qualquer coisa de sacrificial. É evidente que é a obra. Aquilo que estamos aqui a tocar é a noção de obra.”

Este lugar vazio que se cede ao outro, não corresponde, necessariamente, a uma preocupação com este, com os efeitos que terá, num sentido de melhoria da sociedade. Porém, Gustavo considera que a preocupação com a obra é “inevitável” e esta pode passar pela sua própria destruição, que, por vezes, se estende à do próprio criador. Esta destruição pode ser a da assinatura, da forma como se escreve, do expectável, ou mesmo do próprio objecto. “Pensando no Pessanha ou no Pessoa, o que seria para as pessoas uma obra literária ou poética é precisamente aquilo que eles não fizeram. Ficam inacabados. Ficam coisas dispersas, soltas, e a isso temos mais dificuldade em chamar obra. Chamamos obra a uma coisa arquitectada. Essa desistência é uma forma de explorar o potencial de destruição. Não é uma ideia muito óbvia, mas é frequente na literatura. Operar pela via da destruição. Mas isso significa entrar no espaço da obra, no terreno das exigências que a obra faz. Há um momento em que, se o escritor tem a noção de que essa entrada na obra é uma transição absolutamente necessária, ele não está preocupado com o que a obra destrua de si próprio ou dos que estão à volta de si. Se tiver que destruir, destrói, desde a vida normal ou saudável, o casamento, a relação com os filhos, o poder político. Quantos escritores, não deram cabo da sua relação pacífica com o poder político?”

Este traço biográfico é comum entre esta comunidade. Mas, continua-se a olhar de forma romantizada para estas (est)éticas e, simultaneamente, institucionalizada para os autores, a partir de um ângulo mais “humanista, mais escolar”, enquanto “pessoas extraordinárias, superiores a nós, que contribuem para a melhoria da vida social”. Na perspectiva de Rubim, somos nós que os vemos assim, apenas. Vigora “uma visão engravatada (…) da literatura, uma coisa feita por umas pessoas que são dignas de todas as homenagens quando morrem.” Este pensamento não tem uma correspondência com a vida, que se dilui, obceca, desarruma e se desequilibra. “A obra é uma entidade que tem exigências próprias e o escritor fica dominado por essas exigências. Não é que ele se transforme numa marioneta da obra, mas não consegue deixar de pensar na mínima palavra que escreveu. A preocupação com a obra transcende a possibilidade de ele a gerir como um bom administrador, ‘agora faço um livro, faço umas férias, uma entrevista’. A maior parte dos escritores não são gerentes. São pessoas para quem um capítulo de um livro, publicado há 15 anos, ficou na cabeça: ‘aquilo não está bem…’ E, um dia, podem tomar a decisão de escrever aquele livro todo, só por causa de um capítulo.” A obsessão é via rápida para o esquecimento de tudo o que não é o obcecado, devido a uma espécie de cegueira relativamente ao que o circunda. Fica o ego, que nem de si próprio sabe. “Ao mesmo tempo, a obra pode ser suscitadora de obsessão e o escritor perder o sentido do prazer de viver por si mesmo. Portanto, o suicídio torna-se uma opção quando a obsessão é avassaladora e o resto da vida não se compõe.” Estas situações não são admitidas socialmente. Talvez porque sejam da ordem da desordem, da incapacidade de viver o que a sociedade construiu, a forma como se gere. Designam-se de “pessimistas” aqueles que não ignoram o fenómeno humano da morte. Na verdade, é o seu fascínio. É daí que parte o pensamento acerca do sentido, a fonte da literatura. Porque tem uma relação íntima com a vida, acolhe o “lado negro da humanidade”, “é uma espécie de antropologia negra da humanidade”, onde entram todas as partes, inclusive, aquelas pelas quais não se procura.

Três horas e meia de conversa, impossível de não citar quase na íntegra, não morrer como autora e de não deixar morrer o guião e Pessoa num porto qualquer.

Talvez seja esse o gesto da leitura, estender as margens, os braços, os braços como barcos.

*Este artigo encontra-se ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia da cortesia de Gustavo Rubim


[1] Consultado em: http://arquivopessoa.net/textos/3090

[2] Consultado em: http://arquivopessoa.net/textos/3095

[3] Consultado em: http://arquivopessoa.net/textos/3101

[4] Consultado em: http://arquivopessoa.net/textos/3105

[5] “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”, p.2

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