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A palavra doutro: João Tordo sobre “Cartas a um Jovem Escritor”, de Colum McCan

In contra. Colisão entre existências distintas Bela Sombra, Jardim da Estrela, 27 de Janeiro, 18h00…

Texto de Raquel Rodrigues

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In contra. Colisão entre existências distintas

Bela Sombra, Jardim da Estrela, 27 de Janeiro, 18h00

Cartas a um Jovem Escritor, de Colum McCan, sobre a mesa branca junto ao vidro que nos separa do jardim nocturno, entre o chá de João e o meu café. Naquele dia, da parte da manhã, João havia estado a escrever as últimas páginas do livro que lançaria em Março, Manual de Sobrevivência de um Escritor. Esteve presente no almoço de aniversário do seu sobrinho e, à tarde, tratou de burocracias. Acerca desse dia, disse: “Não criei nada de particular.” Atentando no verbo “criar”, acrescentou: “Acho que essa palavra é um bocadinho estranha porque, quando estou a escrever, sim, há um momento de criação, sim, surge alguma coisa, mas conforme se vai avançando na escrita, não sinto que seja criar. Sinto que estou a dar espaço àquela ideia original.”

João Tordo descobriu esta obra quando estava a escrever Manual de Sobrevivência de um Escritor, há cerca de um ano. “Achei que era mais interessante trazer uma coisa que estivesse relacionada com o que vou publicar a seguir, do que com o que já publiquei.” Em Cartas a um Jovem Escritor, Colum McCan dirige-se a alguém que deseja ser escritor, aconselhando-o, de forma, muitas vezes prática, desmistificando o exercício, olhando as horas mais duras e desesperantes, integrando-as, naturalizando-as, e, simultaneamente, encorajando, numa imensa simplicidade. João não considera que seja um livro só para escritores, mas para quem escreve. A diferença que aponta entre os primeiros e os segundos reside na experiência. “Durante os primeiros romances, podia dizer que escrevia, mas não me sentia um escritor, no sentido que não tinha uma voz muito própria, uma construção dessa voz, de uma maneira de contar. Só ao quinto livro ganhei uma confiança. Estou seguro de que a maioria dos meus leitores, se, ao chegar a uma livraria, abrir um livro meu, sem ler o título nem o nome do autor, consegue dizer que sou eu, porque o estilo esta lá. Esse estilo não é definível, não é uma forma de pontuar nem de usar os verbos. Isso ganha-se com a experiência, fazendo. Muitas vezes, no desejo de sermos as coisas antes de as conseguirmos, autointitulamo-nos ‘escritores’. Somos apenas alguém que escreve. Aconteceu-me o mesmo. Ao primeiro livro, pensava que era escritor e, hoje, olho para trás e digo: ‘Não, era alguém que escreve.’ É um ofício que demora muitos anos a aprender.” João reconhece que há “uma fé inicial”, a qual não deve ter como resposta a espera pela musa, mas um compromisso diário de escrita e leitura e de tudo o que é além e com estas.

Na visão de Tordo, há uma aliança entre o tempo e a vida, e a escrita também amadurece. “Há uma expressão do Stephen King: ‘A vida não é o sistema suporte da arte, é o contrário.’ Ou seja, a arte é o sistema de suporte da vida. Aquela ideia, que muitas pessoas têm, de que o escritor é uma pessoa isolada, fechada num quarto, não tem muito que ver com a realidade. Quanto mais tempo passas nesse quarto, com a porta fechada, mais tens consciência de que as coisas mais importantes estão do outro lado da porta. Nesse sentido, não vivo para escrever. Escrevo porque estou vivo. Por caso, aconteceu-me a partir deste ofício, aconteceu-me gostar de fazer isto, aconteceu-me ter algum talento. Quinze por cento de talento e o resto tem sido trabalho.” Esse trabalho implica um caminho entre as heranças, reconhecendo-as e guardando-as para as evocar. As leituras preparam, amparam. “Há uma certa estrutura de base, que tem que ver com a leitura, muito importante para o escritor. Senão, não temos referências, suporte, nada onde cair quando nos sentimos mais frágeis. E a quantidade de vezes que me apoiei, como se fosse um anão ao ombro dos gigantes dos clássicos… Foram milhares de vezes em que me apercebi de que estava a fazer aquilo porque tinha lido Kafka, Dostoiévski, Saramago…”

“Mas aprender a escrever é aprender a viver. É perceber que as horas que estás naquele quarto são sagradas, portanto convém desligar o telefone e não sair do quarto, a menos que haja uma emergência, e, se tiveres problemas, deixa-os para a hora de resolver problemas e, quando saíres do quarto, não leves a porcaria contigo. Há muitos casos de escritores que, por causa desses desentendimentos entre a arte e a vida, acabam mal. Há sempre essa possibilidade. Por isso, convém saber onde está a porta.” Quando se sai há uma transformação. “A escrita vai abrindo lados em mim que eu não conhecia ainda. E isso é muito bom porque também permite aceitar-me como sou, que é um processo que demora a vida toda, mas que a literatura ajuda muito.”

João, falando de conselhos, aconselha, unindo-se ao escritor que, na verdade, está consigo. Num gesto semelhante, contam que o equilíbrio é um exercício de tacto num quarto escuro e que é preciso atravessar as noites para se iluminarem as mãos.

É assim o trânsito no branco. “Não há escrita sem uma dose generosa de pathos no sentido de sofrimento, patologia, disfunção. E, para mim, as melhores personagens são aquelas que têm um pathos mais enraizado, que gera, segundo Aristóteles, uma hýbris, ou seja, uma audácia, um atrevimento, um instinto para desafiar a realidade. O Dom Quixote é um desafiador de tudo. A sua audácia leva-o aos píncaros do exagero e da loucura. Uma personagem tem de ser suficientemente negra para que a luz possa entrar. Quando somos opacos, a luz não pode entrar. Quando há uma espécie de espaço, ali, perante a ferida, já é mais fácil de entrar a luz. Quanto mais trabalhada for a ferida, mais sentido faz que o livro seja de aventura, de descoberta de um lado das personagens que estava ainda oculto.” João considera que não se trata de compreender, mas de observar essa libertação que as personagens vão operando, como se movem. “Nesse sentido, o escritor que acho que sou é mais um espectador do que está a acontecer.”

Mas esta travessia “não tem só que ver com a escrita”. Tem que ver com estar no mundo, com mover-se nele, entrar nas casas e nos quartos, abrir as janelas, fechar as portas de todos os lados, sair, caminhar na rua, saber como subir e descer a calçada ou a montanha, pressentir onde fica o mar e deixar sempre estrada para o regresso. Trata-se de uma aragem que a vida e a escrita dentro dela precisam para a saúde do pensamento.

João nota que os escritores, em particular, não se deixam ensinar pelos outros e o que conhecem é o que a vida lhes escreve com tinta áspera. Isso tem que ver com a solidão, a solidão de percursos não ensinados. Contudo, aponta que a solidão, dentro do quarto, é vivida, muitas vezes, com egoísmo. Por isso, é importante sair do quarto, isto é, de zonas de si mais fechadas, transitando para outras, mais epidérmicas, onde o outro é sentido e a vida é situada, ao entender-se como integrada. “Quando estou fora, tento ser uma pessoa generosa, uma boa pessoa e não me confundir com uma personagem de ficção, uma personalidade extravagante. Acho que há várias coisas que podem minar uma carreira, ou estragar a tua relação com a escrita ou contigo próprio e, essas coisas estão todas relacionadas com esse egocentrismo, que pode levar à vaidade, ao narcisismo, e as coisas tornam-se mais complicadas. Começas a achar que o mundo está contra ti, que não te entende, que és um incompreendido. Tornas-te um escritor maldito, e eu não tenho interesse nessas coisas.” Nessa orientação, viver-se-ia para escrever, e João, como tem vindo a dizer, escreve porque vive. E o “tempo é finito”, repete ao longo da conversa. Encapsulado no ofício de escrita, não sentiria o tempo, perderia(-se) (n)a vida, o sujeito e o objecto seriam trocados, porque o papel pode engolir. É importante recordar o sentido dos gestos, não ficar pelo gesto em si.

Quando João começou a escrever, não foi um jovem escritor que recebeu cartas com conselhos. Hoje, se escrevesse a esse jovem dir-lhe-ia “para não ter tanta pressa, para ter mais compaixão de si próprio, que não se passa a ser escritor, vai-se conquistando. Os jovens têm muita pressa e eu tinha muita pressa. Virgílio Ferreira tem uma frase: ‘Tudo é demasiado lento para a urgência que eu tenho”. E isso é verdade. Tudo é demasiado lento. Urgência de publicação, de ser conhecido, da crítica dizer bem de nós...’” Na verdade, quando publicou o primeiro romance, O Livro dos Homens Sem Luz, em 2004, teve um conselho. Rui Zink disse-lhe “para não viver da escrita porque isto era uma escravidão. E eu ignorei o conselho olimpicamente e decidi viver da escrita. E, de facto, é uma escravidão. Ele tinha razão. Sou escravo da literatura.” Afinal ou também.

Porém, a vida é maior e abraça tudo. “Gosto muito da minha profissão, mas também não sou só isto. É uma coisa que faço, mas a minha vida tem outros matizes. Às vezes, tendemos a identificar ‘João Tordo, o escritor’. E as pessoas são mais do que isso”. McCann aconselha o jovem escritor a pensar qual seria a última frase que pediria para dizer, quando estivesse a aproximar-se a morte.

A palavra vai querer dizer a vida, mas vai perder-se. “Se calhar valeu a pena andar aqui. Não sei se, quando chegar aí, valeu a pena andar aqui ou não.” Dizendo uma frase que ainda não sabe o que diz, veste o casaco preto à pressa porque será longo o caminho e João prefere ir a pé.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia de Vitorino Coragem

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