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A palavra doutro: Maria João Cantinho sobre “Doutor Faustus”, de Thomas Mann

In contra. Colisão entre existências distintas No ponto de encontro de um tempo desencontrado, um…

Texto de Raquel Rodrigues

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In contra. Colisão entre existências distintas

No ponto de encontro de um tempo desencontrado, um ecrã

A professora, investigadora, ensaísta, ficcionista e poeta, Maria João Cantinho, cuja última obra publicada, Asas de Saturno, é uma homenagem à que nos traz, começa por perguntar como está a ser a minha quarentena. Esta interrogação simples lançou uma entrevista que se tornou num diálogo, onde Maria João me ia chamando: “Como é que a Raquel lê?”

Doutor Faustus é uma obra, cujo contexto biográfico do autor, Thomas Mann, é uma lanterna de leitura. Comparando o momento histórico da escrita desta última, publicada em 1947, e d’A Montanha Mágica, em 1924, Maria João chama a atenção para a forma como o contexto entra no texto. Enquanto que a primeira é de “elevação e redenção”, uma vez que “ainda estava sob influência da grandiosidade da Alemanha”, na segunda é clara uma mudança de posição em relação a esta. “Escreve Doutor Faustus no final da vida, quando já tem 75 anos, depois de uma experiência de exilio, dor, tragédia.”

A obra pode enquadrar-se no género romance de formação. O narrador Serenus Zeitblum conta a vida do amigo, o compositor Adrian Leverkühn, pressentindo desde a infância a escuridão do seu espírito, devotado ao mal, que evoca o médico, mago e alquimista alemão, Johann Georg Faust, cujo período de vida se situa entre o fim do século XV e a primeira metade do século XVI. A sua memória ficou na história do imaginário alemão, devido ao pacto com o diabo, na condição deste lhe satisfazer os desejos. No caso de Adrian, que representa a Alemanha contemporânea do autor, a entrega a esta entidade deveu-se à sua aspiração em tornar-se um génio da música. “É a figura do último homem e, ao mesmo tempo, do criador. Adrian tenta superar-se através das suas descidas ao abismo, ao abismo do mal. A ideia do pacto com o diabo é a tentativa de se confrontar com os demónios para poder sair incólume com a sua obra criadora, de uma forma alquímica”, explica Maria João, que considera não se tratar de uma livre adesão. “O mal tem que ver com a vocação, no sentido em que ele é um génio. O mal é destino e ele não pode escapar-lhe. Ele está votado, vocacionado para a música, para a genialidade da música.”

Esta aliança foi consumada quando se envolveu com a prostituta Esmeralda, o mesmo nome de uma espécie de borboletas que se encontrava nas fotografias que o seu pai, Jonathan, coleccionava. Jonathan é uma figura cujo mistério reside na relação com a natureza, de imensa curiosidade e atenção ao detalhe, com uma forte componente mágica. “O pai já representa, de alguma forma, essa condição de genialidade que o filho virá a ter. O filho é, já em si, a fase da transmutação alquímica”, sinaliza a escritora, referindo que a leitura de Thomas Mann só acontece “sob a égide dessas correspondências íntimas”, “no sentido romântico, de afinidades electivas”.

Em troca do génio, o amor foi-lhe proibido. “Está aqui presente a questão do eu, enquanto fechamento. Desde pequeno que há uma indiferença muito grande em relação aos outros e no início da obra, o narrador, o amigo Serenus, interroga-se se Adrian, alguma vez, teria amado alguém. O mal é da ordem do egoísmo e o amor é precisamente essa quebra, por uma ligação abertura ao outro, enquanto outro, o que não sou eu. Seria uma ameaça à estrutura, ao destino, à circularidade”, comentei. A maldição cumpriu-se quando o filho morreu porque foi por ele amado.

Porém, Adrian vivia num imenso sofrimento, que é sinal da sua tragédia pessoal. Este também era físico, pois, desde cedo, tinha cefaleias, que não deixam de traduzir uma sociabilidade lesada, surgindo, muitas vezes, em momentos sociais íntimos. É numa noite de crise cefálica que surge a aparição aguardada do demónio. 

Pressentindo que a loucura está a chegar, em cujos domínios ficou durante os dez últimos anos da sua vida, convida trinta pessoas, entre as quais se encontravam amigos, mas também desconhecidos, para escutarem a sua última composição. Contudo, quando o encontro começa, anuncia que vai realizar uma confissão àqueles de quem se demarca por um pecado que transcende as falhas humanas comuns. Numa “imploração amigável e cristã”, dirige-se-lhes: “Não acolhais desfavoravelmente a minha arenga, mas tentai entendê-la no seu melhor sentido (…) nesta hora em que tenho a ampulheta diante dos meus olhos e careço de estar preparado para que, no momento no qual os derradeiros grãozinhos descerem pelo gargalo, venha buscar-me Aquele a quem me vendi a claro preço, assinando o pacto com o meu próprio sangue, comprometendo-me a pertencer a ele eternamente com o corpo e com a alma e entregar-me a Suas mãos e Seu poder, logo que nada mais passar pelo orifício e o tempo, que é a sua mercadoria, estiver esgotado.”[1]

Tratar-se-á de um momento de redenção? “É um romance todo sem esperança que, no final, acaba por se abrir com um momento de redenção. São momentos em que toda a dilaceração se transforma em obra de redenção pela obra humana, pela música. Não é a redenção do homem, porque o homem fica condenado à loucura, mas a do homem pela sua obra. É assim que a Raquel vê a redenção?” “Ao realizar uma confissão, já está a assumir a responsabilidade pelo seu mal, pela sua própria vida, perante um outro. Isso introduz uma dimensão social. Rompe com o destino porque se liga ao outro, abre-se. Este aspecto é reforçado pelo recurso a citações bíblicas que levantam uma esperança de salvação que, neste âmbito, é a eterna,” partilhei.

Maria João defende que a loucura aparece como uma libertação da dor e do génio, desencadeada pelo regresso à infância, encontrando aqui uma comunhão com Nietzsche, não só através da forte componente niilista, mas também pelo facto do filósofo ter estado o mesmo número de anos sem falar. Considera, no entanto, poder ser vista como uma condenação. Contudo, inclina-se para a primeira leitura, reconhecendo a ideia nietzschiana do “herói criança”, “do criador como criança”, “alguém que cria como joga”.

Há uma ternura na narrativa de Serenus, que, desde o início, declara um amor profundo por Adrian, consciente de que é incomparável com aquele que recebia, mas ressalvando que era a única pessoa a quem o compositor tratava por “tu”. Por isso, o seu gesto movido pelos impulsos do coração, procura movimentar a vida do amigo para o olhar compassivo de outros, mostrando que tudo, possivelmente, lhe foi destino e crendo que a sua alma poderá estar em paz. Dedica os primeiros capítulos à sua apresentação, não porque queira ocupar um lugar de protagonista, mas porque lhe é necessário que o leitor esteja esclarecido quanto à natureza daquele que lhe escreve, que renunciou sempre ao mal. “Tem que ver com outro aspecto filosófico que é a divisão entre o apolíneo e o dionisíaco. Serenus Zeitblum é um espírito apolíneo, da luz, da serenidade, enquanto que Adrian Leverkühn é um espírito da escuridão. E eles são amigos desde sempre. Thomas Mann precisava de apresentar ali alguém sereno e apolíneo, que fosse capaz de compreender ou, pelo menos, de se enternecer pela figura do amigo. Mesmo apesar de ver as influências dele e de o assustarem, acompanha-o sempre até ao fim, e de uma forma sempre serena. É uma espécie de contraponto musical à figura de Adrian. Não sei se foi essa a ideia com que a Raquel ficou…”

*Texto escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1945


[1] Thomas Mann, «XLVII», Doutor Faustus, São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.508

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia de Alfredo Cunha

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