Em 2013 foi lançado o jogo The Last of Us, da Naughty Dog, na Playstation 3 e revolucionou a narrativa clássica dos videojogos, enveredando por uma via mais cinematográfica do que um jogo de consola anteriormente teria. O protagonista era Joel, um pai que perdeu a filha durante uma pandemia zombie e que é encarregue de levar Ellie, uma adolescente com a idade que teria a filha, a uma milícia que procura uma cura. Isto porque Ellie é a única pessoa no Mundo que é imune a esta doença. Uma história cujo tom e abordagem inspiraram várias narrativas do mesmo género, incluindo The Walking Dead e outras narrativas do pequeno e grande ecrã. E, apesar de Joel ser o protagonista principal, a atenção caiu rapidamente sobre Ellie, a jovem que era involuntariamente e com relutância a chave da salvação da Humanidade.
Em Left Behind, um expansion pack lançado em 2014, acompanhamos Ellie também na sua vida pré-The Last of Us e vislumbramos uma relação muito próxima com uma rapariga que viria a fazer parte da mesma milícia que combatia a pandemia zombie. Um pequeno conto em dois tempos, que mostrava Ellie a descobrir-se pela primeira vez enquanto pessoa LGBTI. Em The Last of Us 2, lançado em julho de 2020 em exclusivo na Playstation 4, Ellie tem já 19 anos e está muito mais madura e em contato com os seus sentimentos e desejos enquanto mulher lésbica. E todo o jogo, ou quase todo, é centrado nela e numa espiral de vingança que nos faz reavaliar o nosso amor pela criança inocente que conhecíamos e perceber que a maturação numa realidade destas não se faz sem perder muitas coisas que nos tornam pessoas e humanas.
Ao longo dos últimos anos temos visto aumentar a representação feminina nos videojogos, uma indústria ainda muito machista cuja visão das mulheres ainda era muito assente na donzela em apuros, altamente sexualizada e sempre a necessitar de salvação por parte do protagonista masculino. Heroínas como Aloy, de Horizon Zero Dawn, e Cassandra, de Assassin’s Creed Odyssey, têm vindo a mudar um pouco isso, mas a realidade é que Ellie é um marco fundamental na representação das mulheres e das pessoas LGBTI nos videojogos. The Last of Us 2 vendeu mais de 4 milhões de cópias no primeiro fim de semana, tornando-se no exclusivo Playstation 4 mais vendido de sempre, e é já dos mais rentáveis de 2020. Num panorama ainda caracterizado pela celebração do masculino dominante, Ellie é uma lufada de ar fresco, uma mulher LGBTI vulnerável e forte, com falhas e virtudes.
The Last of Us 2 não é um jogo fácil. Neil Druckman, escritor e realizador da saga, certificou-se disso mesmo. O primeiro jogo era muito assente no combate aos zombies e na introdução a um mundo pós-apocalíptico sem vislumbre de misericórdia ou salvação. Aqui o maior inimigo é a própria Humanidade e como se transfigura quando reduzida aos seus instintos mais básicos de sobrevivência e comunidade. Agora não são os zombies o maior inimigo de Ellie, mas a sede de vingança de outras pessoas — e dela própria — que viram as suas vidas roubadas pela perfídia da natureza humana. Por isso, a violência entre humanos é aqui muito mais chocante, porque o realismo da situação narrativa e do próprio sistema de combate nos obriga a pensar duas vezes antes de matar alguém, porque essa pessoa tem nome, tem amigos, tem uma vida que conseguimos muitas vezes vislumbrar através de outras ao matá-la. Nesta representação altamente fiel da violência, o realismo das mortes consegue ser gráfico ao ponto de colocar em cheque toda a outra violência gratuita que vemos nos videojogos, e só isso é também uma pequena revolução.
Sem querer revelar muito do enredo, que será adaptado por Johan Renck (criador de Chernobyl) para a HBO, The Last of Us 2 vai ainda mais longe na representação LGBTI, apresentando uma personagem secundária vital na pele de Lev, um rapaz trans que é expulso do culto religioso apocalíptico de que fazia parte por ter rapado o cabelo e revelado a sua verdadeira expressão de género. Lev e a sua irmã Yara são extremamente puros e acabam por ser o coração de The Last of Us 2, uma vez que as restantes personagens se encontram já contaminadas não pelo fungo que causa a doença, mas pela sua própria Humanidade, numa visão altamente pessimista da mesma.
No final de The Last of Us 2, sentimos que jogamos um irrevogável marco da indústria. E não unicamente porque o detalhe e rigor técnico da tecnologia aplicada permitiram a construção de um dos mais incríveis sistemas de batalha e gameplay alguma vez vistos em qualquer plataforma. Mas principalmente porque deixou-se povoar, mesmo num mundo pós-apocalíptico, por personagens diversas que representam toda a Humanidade. Mesmo quando ela é fatalmente pérfida e cruel.