Algures em 2008, lancei o meu primeiro álbum sob o pseudónimo de Walter Benjamin, numa edição em CD-R típica à época, dentro de um envelope com uma capa impressa por nós. Na altura, eu fazia parte de uma editora independente (definíamo-nos como netlabel, um site que disponibilizava [e ainda disponibiliza!] os discos gratuitamente e permitia o streaming dos mesmos), e cujo nome era Merzbau, tendo sido fundada pelo pianista Tiago Sousa, em 2005. A primeira edição foi um EP da minha primeira banda, que gravei praticamente sozinho no quarto, corria o Verão de 2004, nos tenros 18 anos. Acabado de sair do liceu e com baixas expectativas em relação à minha entrada na universidade — tendo em conta o meu desempenho aquém de brilhante nos exames finais, mas com altas expectativas em relação às possibilidades que a vida parecia abrir diante de mim, por finalmente me ver livre para poder ser um músico com uma carreira académica satisfatória o suficiente para não chumbar – algo simultaneamente excitante e aterrador aconteceu. Pela mão da Merzbau, apareceram as primeiras edições de artistas como B Fachada, Noiserv, Ricardo Martins, muita coisa experimental, e mesmo a banda que partilhei com o Tiago Sousa e muitos outros – os Goodbye Toulouse. Voltando ao CD-R lançado sob pseudónimo roubado a um filósofo alemão, na altura do lançamento, anunciámos ao mundo dos fóruns nerds de música que tínhamos uma edição limitada a 100 exemplares, mas a verdade é que o Tiago não conseguiu comprar envelopes suficientes e a edição acabou por resultar oficiosamente em algo como 83 discos. Cada CD gravado individualmente no velho PC que morava lá em casa, e cada um carimbado individualmente.
Assim surgiu a minha primeira grande profecia, com o lançamento de The National Crisis, um disco que teve uma crítica na Time Out que dizia algo como: «Temos 45 segundos de alegria pop em Soldiers e depois novo bocejo.» Também teve críticas simpáticas, mas esse era o destaque escolhido na secção de imprensa da minha página do MySpace. Pouco tempo depois desta minha estreia em longa duração, já com o mercado de trabalho à porta, caiu-nos a célebre National Crisis com o colapso do sistema financeiro internacional, o nacional, a derrocada da Grécia e vários outros países europeus, enquanto éramos governados por um primeiro-ministro corrupto, e consequente instalação da troika em Portugal e da vitória do Governo Passos Coelho. Foram tempos de bastante incerteza e, francamente, de desânimo. Literalmente todos os dias, o Governo apresentava medidas novas que agravavam as medidas apresentadas na semana anterior, e o cenário perfeito para executar o velho sonho da direita neoliberal portuguesa, privatizar coisas. Apesar de não achar, de todo, que a culpa da crise fosse de Passos Coelho, o único discurso que o Governo conseguia produzir era que o país estava falido, e ninguém parecia ter alguma ideia sobre o tema «esperança». Aparentemente, Portugal ia acabar e a única solução que os jovens teriam seria emigrar, sob pena de não conseguirem um emprego ou algo tão simples como um futuro. Em 2013, vivia em Londres e resolvi voltar para o país, a contraciclo, deixando para trás um contrato de trabalho precário, para mergulhar na profunda incerteza de querer ser músico no meu país falido. Mas trazia um plano na mala, o de querer começar a escrever canções em português.
Avançando para 2015, sai o meu primeiro álbum enquanto Benjamim, Auto Rádio. O que é que acontece a seguir? Muitos concertos! Algumas festas. Até a esquerda se entende e, em Novembro do mesmo ano, nasce a Geringonça (o melhor nome de governo de sempre e provavelmente a melhor contribuição de Paulo Portas à sociedade, ao popularizar o nome).
Sobrevivendo ao primeiro disco, passando incólumes por 1986, o mundo continuou a girar e The National Crisis continuou a ser uma piada que eu contava em entrevistas ou quando me armava em festas, como se profeta da desgraça fosse alguma coisa que pudesse entusiasmar as pessoas. Tudo estava a correr bem até que, em 2019, passei boa parte do ano a trabalhar no que seria o meu próximo álbum, ao qual decidi atribuir o nome de Vias de Extinção. Em Março de 2020, saímos do Namouche (lendário estúdio) com o disco praticamente gravado, prontos para as dobragens finais, e, na semana seguinte, o mundo fecha. A partir de agora, terei muito mais cuidado com os títulos dos meus discos.
No meu primeiro e simultaneamente anterior texto desta coluna que simpaticamente me ofereceram, falei sobre crise climática, pandemia, o fim do mundo, mas não consegui prever a guerra que rebentou na Europa. Se calhar só funciona com títulos de álbuns.
A questão que pesa na cabeça é como recomeçar a vida depois da pandemia e saber que às portas da Europa as nuvens são negras? Depois de dois anos de incerteza diária em relação aos concertos, agora que até parece que a nossa vida vai voltar, e faz sentido existir, como encaixar na cabeça estes sentimentos tão contraditórios? Claro que o sofrimento humano sem limites não é algo que começou em 2022. Sempre vivemos (à distância) com a dor do povo da Palestina, as guerras que acontecem por este mundo fora que nem sequer aparecem no telejornal, apesar da secção sobre futebol ser sempre inevitavelmente demasiado longa. Agora, assistimos a mais um desastre humanitário, este aconteceu num país aparentemente estável, apesar de todas as convulsões recentes. O simples gesto de esmagar o vizinho com uma brutal e gratuita invasão de um país soberano às portas da nossa União Europeia, é algo ao qual provavelmente nenhum de nós imaginaria assistir. Depois da pandemia vinham os loucos anos 20, mas o século xx parece querer repetir-se de uma forma bem mais sinistra do que antecipávamos. Por mim, vou tentar não abusar da sorte e acabo com um bocado de letra que escrevi, numa tentativa de influenciar o futuro:
É tempo de voltar para casa
que a hora teima em avançar,
As pernas são mais fortes
que as balas de um canhão
já farto de trabalhar.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre Benjamim -
É um escritor de canções, músico e produtor que gosta de dançar, apesar de assumir não ter muito jeito. Em 2020, lançou Vias de Extinção, um disco que começou na pista e acabou a ecoar no vazio que a pandemia criou, terceiro álbum depois de 1986 — disco bilingue a meias com Barnaby Keen lançado em 2018, — e Auto Rádio, em 2015. Como produtor, já trabalhou com nomes como Joana Espadinha, Cassete Pirata, Lena’Água, B Fachada, entre outros.