Quando escrevo para o Gerador, normalmente opto pelo desafio pessoal de me adaptar ao tema de cada edição, apesar da liberdade para escrever sobre o que sentir ser mais relevante.
Desta vez, talvez pela raiva, pela confusão, pela vergonha da situação… queria mesmo muito escrever sobre o ‘estado das coisas’ que estamos a viver (ou em que estamos, tantos de nós, a sobreviver).
Lembro-me de ser mais nova, quando os meus pais ainda estavam juntos, de - de vez em quando - nos cruzarmos com alguns estrangeiros que percebiam português e o meu pai descrevia Portugal sempre da mesma maneira. Não falava sobre o Cristiano Ronaldo, nem sobre as praias, ou o sol… pelo menos não antes de dizer «Sabe, Portugal é um país pobre». Com o tempo, fui percebendo que não era de Portugal - no geral - que o meu pai falava. Era do Portugal dele. Ainda assim, felizmente, a minha família foi conseguindo quebrar o ciclo e «subindo de escalão social» para aquilo que podemos considerar a classe média (tendo em conta outras realidades de pobreza que existem no nosso país).
O problema (ou um dos problemas) é que o custo de vida foi ficando mais caro, a habitação mais inacessível, o acesso a bens essenciais, os serviços, e o custo de transporte aumentou, mas os salários não aumentaram - de todo - na mesma velocidade e proporção. O resultado é que «o rico fica mais rico e o pobre fica mais pobre».
Quando falamos de ricos, não consigo esconder um sentimento que se traduz num suspiro triste quando algumas pessoas da classe média se sentem atacadas como se lhes fossemos retirar alguma coisa. Não são vocês. (Calculo que poucos ricos - daqueles que estou a falar, os mesmo muito ricos -, não vão ler esta crónica. Lamento, Gerador. São os ricos que o país serve.)
Em Portugal, o parque habitacional público corresponde a 2 % havendo países na UE em que chega aos 35 %.
Recentemente li uma reportagem da Mensagem Lisboa sobre habitação, em que contavam a história de Victor, doente oncológico - que dorme num quarto com bolor e humidade de cima a baixo - apesar de lhe ter sido fortemente recomendado «não pode dormir debaixo daquelas paredes negras», e da Isabel que dá banho à neta com um alguidar que enche na cozinha. Os moradores do bairro da Boavista estão há anos numa luta para ver os seus lotes reabilitados. As promessas levam anos, mas bastou uma visita da Mensagem ao gabinete da vereadora da habitação para ver os dois casos parcialmente resolvidos. Porque as vozes dos habitantes, como a do Vitor e da Isabel, importam menos. Não rendem tanto.
Durante a grande manifestação pelo direito à habitação, no passado dia 1 de Abril, conversei com algumas pessoas sobre o porquê de estarem ali. Quem é que está a ouvir estas histórias?
Tive a confirmação do que já suspeitava há um tempo, a classe média está a desaparecer. Na manifestação estavam estudantes que não conseguem ter acesso à educação que mereciam por falta de acesso à habitação, doentes que têm de escolher - todos os meses - entre pagar a renda ou conseguirem os medicamentos que lhes permitem uma vida minimamente digna, professores e médicos que voltaram para casa dos pais por não conseguirem suportar as rendas, guerreiras com dois e três trabalhos em que recebem o ordenado mínimo e, mesmo assim, mal chega para pagar a alimentação aos filhos. Estas pessoas vêem a sua vida a regredir, apesar de trabalharem mais. Vêem-se com menos condições para (sobre)viver, apesar de lhes dizerem que o país está a crescer e com receitas record no turismo.
Não foi a primeira vez que tinha falado com estas pessoas - estas, digo, iguais a mim.
Na zona de Santa Apolónia, onde cheguei a viver, estava acostumada a ver grandes filas para se receber um jantar distribuído por várias organizações/associações que fazem esse trabalho. Costumavam ser pessoas pobres, desempregadas, sem-abrigo. Mais recentemente, são estudantes, profissionais de saúde, professores, empreendedores, casais, jovens, pessoas com salários ditos «médios» que precisam de poupar - pelo menos - num jantar por semana. A Elisa contava-me «eu costumava pensar que vir aqui pedir uma refeição era, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade - só pedimos quando realmente precisamos. Mas, mesmo estando todos empregados na minha família, nós não conseguimos pagar as despesas básicas».
Este governo tem sido socialista menos quando governa. Este é o resultado de um «mercado livre», da lei da oferta e da procura.
Este cenário é um perigo para a democracia, e uma democracia frágil prejudica - essencialmente - os mesmos de sempre: os pobres - nós.
A ausência de uma classe média gera uma sociedade polarizada, uma cada vez maior ausência de diversidade nos poderes de decisão - e, por consequência, piores decisões, piores decisões -, um ciclo vicioso de falsas soluções que só alimentam os mesmos mecanismos de poder, e desespero.
Pobreza é a maior forma de violência. Nela cabem todas as discriminações, todas as limitações que os grupos oprimidos têm: a falta de acesso a uma educação de qualidade, à saúde, à habitação, a uma vida digna.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Carolina Pereira-
Carolina Salgueiro Pereira é uma ativista na área dos direitos humanos, feminismo e media, tanto no terreno, como fazendo uso das histórias para motivar a mudança e organizar movimentos grassroot. É a fundadora do movimento da ONU Mulheres HeForShe em Portugal, que mobiliza os jovens para promover a igualdade de género e os direitos das mulheres e das comunidades LGBTQI+. É a Co-Diretora da Sathyam Project, na Índia, uma organização que apoia raparigas e mulheres através da educação, ajudando a quebrar ciclos de pobreza. Carolina é também uma Global Shaper do Fórum Económico Mundial, liderando campanhas LGBTQ+ e estando envolvida numa série de outras iniciativas com instituições como as Nações Unidas, o Parlamento Europeu ou a Right Livelihood Foundation. Sempre a tentar fazer o mundo um pouco melhor. E sempre melhor a fazer isso.