No meio desta área do ativismo/trabalho humanitário, existe muito o debate – e bem – sobre se devemos ou não colaborar com o sector privado; qual a linha que separa a mensagem que queremos passar de nos tornarmos hipócritas de alguma forma; o que é que as pessoas vão achar de nós; será que vamos desiludir, e – acima de tudo – será útil? Acreditamos que vai fazer a diferença?
No início do meu humilde percurso, por ausência de estratégia, adoptei a estratégia de «tolerância zero». Pensava: «Assim não tem como errar. Não trabalho com nenhuma marca, está resolvido.» Trabalhava apenas para algumas fundações, ONG, associações. Entretanto, fui tentando aprofundar «Só trabalho com B Corps» ou «Vou criar um questionário intensivo sobre condições dos trabalhadores, critérios ambientais, e políticas de diversidade, para enviar a todas as empresas para responderem antes de trabalhar com elas.»
Depois, mais tarde, comecei a centrar-me mais no que é que eu queria dizer e a quem.
Ou seja, as perguntas passaram a ser:
– A mensagem que quero passar vai ser genuinamente respeitada neste espaço?
– Faz a mínima diferença para estas pessoas ouvirem o que tenho a dizer?
– No final de contas, quem é que vai beneficiar mais com esta talk/workshop/campanha?
Acredito que este questionar, de uma outra forma, deveria ser feito por todos nós tendo em conta onde é que investimos o nosso dinheiro, o nosso tempo e a nossa atenção.
Os jargões de greenwashing e fast fashion vieram, infelizmente, para ficar. Aquilo que não vemos, o que está por detrás do produto que nos chega (sustentabilidade, o trabalho escravo, ética, etc.), também nos irá ser cobrado – mais tarde ou mais cedo.
Com o crescimento do fast fashion, a indústria da moda tornou-se a segunda mais poluente do mundo. Desde as tintas de baixa qualidade, insolúveis, ou produtos à base de metais pesados, à confecção de tecidos sintéticos derivados de combustíveis fósseis, tudo contribui para a crise climática que estamos a atravessar. O emprego de mão-de-obra precarizada ou escrava é outro grande problema do fast fashion – desde contratações ilegais, horários de trabalho superiores a 16 horas, condições degradantes e pagamentos ínfimos.
No caso do greenwashing, diferentes empresas e marcas tentam-nos vender produtos verdes, ou criar grandes campanhas de comunicação, sem nunca se comprometerem verdadeiramente com a mudança que é necessária para uma sustentabilidade das futuras (actuais?) gerações.
Entendo que a maioria das pessoas está consciente destes problemas, e até dos efeitos que têm. Acredito que a maioria das pessoas entende as consequências de se contribuir financeiramente para alimentar uma indústria com poucas ou nenhumas condições de trabalho/trabalho escravo, ou as consequências de se negligenciar a responsabilidade que grandes empresas (de energia, e não só) têm na nossa sobrevivência a médio/longo prazo.
No meu caso, em relação a contribuir mais ou menos directamente para algumas dessas marcas, fui vendo caso a caso – respondendo às perguntas que me faziam sentido. Por exemplo, não iria aceitar colaborar com uma campanha de greenwashing da GALP (porque sinto que não eram os trabalhadores da GALP que iriam beneficiar disso, nem as comunidades afectadas pela crise climática, nem que iria surtir nenhum efeito de mudança na própria GALP). Neste caso, o único benefício directo seria para a imagem da GALP – em comunicar algo que nem sequer está a cumprir. Por outro lado, com a McDonald’s, fui convidada para falar sobre direitos humanos, diversidade, inclusão, e sobre «o poder das pessoas na sala» numa talk que costumo fazer chamada «Are we enough?», para todos os treinadores e RP das lojas nacionais. A McDonald’s não me convidou para ser cara de uma campanha que promove o fast-food, mas apenas para passar uma mensagem (que vai ao encontro dos meus valores) aos seus trabalhadores. Não usou a minha imagem (no sentido em que não foi comunicado publicamente que eu fiz a talk), e acredito que os treinadores e RP podem levar (nem que seja só dois ou três) estes valores para as suas equipas. Faz sentido?
Sei que, por vezes, este questionar pode roçar uma linha de discriminação classista. Ou seja, tenho em conta que ainda não existe acesso a alternativas suficientes para que as escolhas possam ser tão simples. Entendo que são precisas alternativas mais acessíveis para que consigamos sentir que temos poder de escolha. No entanto, o que escrevo não é com o objectivo de responsabilizar as pessoas individualmente – porque nem sequer é nessa mudança, por si só, em que acredito.
O importante é sabermos que temos o direito a fazer perguntas. Temos o direito a questionar a origem das coisas, o que é que estará por detrás, o que é que determinada empresa/marca é mesmo quando ninguém está a ver. Isto porque, no final, o dinheiro é nosso (bem como o tempo que investimos para o ter), e as consequências também vão ser para nós.
O que ninguém vê tem muita força. É normalmente aí que se passa tudo.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Carolina Pereira-
Carolina Salgueiro Pereira é uma ativista na área dos direitos humanos, feminismo e media, tanto no terreno, como fazendo uso das histórias para motivar a mudança e organizar movimentos grassroot. É a fundadora do movimento da ONU Mulheres HeForShe em Portugal, que mobiliza os jovens para promover a igualdade de género e os direitos das mulheres e das comunidades LGBTQI+. É a Co-Diretora da Sathyam Project, na Índia, uma organização que apoia raparigas e mulheres através da educação, ajudando a quebrar ciclos de pobreza. Carolina é também uma Global Shaper do Fórum Económico Mundial, liderando campanhas LGBTQ+ e estando envolvida numa série de outras iniciativas com instituições como as Nações Unidas, o Parlamento Europeu ou a Right Livelihood Foundation. Sempre a tentar fazer o mundo um pouco melhor. E sempre melhor a fazer isso.