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Cadernos de encargos: Culpado

*Esta é uma crónica do Carlos Manuel Pereira, inicialmente publicada na Revista Gerador 36.

Em 2016 estreei um solo de comédia, que decidi dar o nome de “CULPADO”, porque desde cedo que aprendi a conviver com a culpa. Em jeito de homenagem com este sentimento que me acompanha desde sempre para sempre, e num jeito inocente, ingénuo, com piadas que hoje não faria novamente, (fruto da exigência que quero para mim) fui para cima do palco do renovado teatro D. João V, na Damaia, falar durante 1h40 da minha infância, da minha relação com os meus avôs, e de como fizesse o que fizesse a culpa seria sempre minha. Convenci-me (convenceram-me, na verdade) que a terapia se fazia em cima do palco.

O espetáculo estava dividido em várias partes: Mãe, avó, avô, mudança para Portugal, etc. E terminava comigo a dizer piadas curtas enquanto dançava ao ritmo do Semba (angola). E na parte dedicada ao meu avô, projetei uma fotografia sua e destaquei algumas frases ditas por ele. E uma das frases destacadas era esta: “PSICÓLGO É COISA DE BRANCOS.” Porque para o meu avô, se um preto se senta para falar dos seus problemas está a perder dinheiro duas vezes. Enquanto está sentado a falar não está a trabalhar, e se não trabalha não tem onde ir buscar depois, e no final ainda vai ter de pagar. E isso não lhe fazia sentido. O pensamento do meu avô não se aplica em exclusivo aos negros, a qualquer pessoa pobre, diria. Cheguei a perguntar-lhe como se fazia em caso de sofrimento permanente, respondeu prontamente “só sofre quem tem a cabeça livre para pensar nestas coisas. Um preto não tem tempo para sofrer. Isso é coisa de brancos”, atirou. Obviamente isso é falso. Sofremos todos. Talvez uns mais que outros.

Meu avô era muito trabalhador, e juntava a isso uma grande objetividade e pragmatismo (que nem sempre aplicava da melhor forma). Era destemido e temido - pela forma, por vezes, demasiado séria com que encarava a vida. E fez de tudo para que aqueles à sua volta tivessem o melhor futuro possível. Fez o melhor que sabia e podia. Mas o que ele não sabia é que ao repetir tantas vezes estas frases convenceu-nos disso mesmo: terapia e consultas de psicologia não era o negro porque o negro não precisa. O negro não sofre. O negro não tem problemas de cabeça.

O meu avô não pensava assim porque sim. Convenceram-no disso, que foi feito para trabalhar e que só assim conseguia sobreviver, e ele, bem-intencionado, limitou-se a trespassar aos seguintes que teria de ser assim.  E tal como o meu avô, existem muitos outros avós, pais e mães, que não sendo culpados replicam este pensamento, que advém muitas vezes dos contextos e sistema onde estão inseridos que os impossibilita de olhar para a saúde mental como sendo um problema. Porque não há tempo para sofrer. Não há tempo para pedir ajuda. Mas sem saúde mental não há saúde.

É uma prática comum, mas errada, desvalorizar-se as questões relacionadas com a saúde mental. Mas ainda mais comum na comunidade onde me insiro. Também pelos motivos que acima mencionei. Existe uma grande resistência em abordar o tema. Desvalorizamos, entre nós, jovens e adultos, principalmente homens qualquer tipo de questão do foro psicológico. E quando damos por nós temos uma geração de estigmatizados que é incapaz de pedir ajuda, e outros que são eficientes a estigmatizar. E a corrente do estigma vai-se mantendo. Crescemos sozinhos, isolados, e habituamo-nos a sofrer em silêncio com sensações e sentimentos que temos dificuldade em identificar, e temos ainda mais dificuldade em procurar quem, de forma profissional, possa identificá-los por nós. E quando finalmente ganhamos coragem para pedir ajuda, como foi o meu caso, existe uma forte possibilidade de nos cruzamos com profissionais que, não tendo a nossa experiência, não sabem interpretar parte dos nossos problemas. Lembro-me de uma psicóloga dizer-me o seguinte - “o Carlos veio ao mundo para sofrer, é a sua condição, tem de aprender a lidar com isso.” Obviamente que me levantei e fui-me embora. E o que devia ter sido uma experiência positiva, acabou por ter o efeito contrário. E acrescentar mais um trauma à uma lista que era suposto ser reduzida.

Ao longo do nosso percurso enquanto jovens negros estamos expostos a um conjunto de micro agressões, e a uma luta constante por um lugar na sociedade que a curto e longo prazo deixam mossa, traumatizam, e que não sendo abordados da forma ideal causam transtornos psicológicos. E a única coisa que nos dizem é que temos de ser fortes, ou se tivermos azar, que é essa a nossa condição: sofrer. Não chega apenas ser forte. Ajudem-nos a viver além das lutas raciais que farão sempre parte da nossa vida. Pais, amigos, avós, profissionais, sociedade, olhem para nós como jovens sensíveis e frágeis que somos. Ouçam-nos, reparem em nós, e ajudem-nos! Mas não o façam apenas connosco, façam com todos aqueles que vos rodeiam, todos sem exceção, sendo negros ou não! O estigma ainda existe, mas temos a responsabilidade e dever de combatê-lo. Aprendendo a ouvir quem nos fala, e fazer um esforço para conseguir ler os sinais.

Mas não seria justo da minha parte não admitir que finalmente estamos num período em que cada vez mais se entende a importância de cuidar da mente. Hoje em dia é quase impossível não tropeçamos num post, tweet, podcast, artigo sobre a importância da saúde mental e de como é importante pedirmos ajuda, e repararmos nos sinais de quem nos rodeia. É sinal que estamos a evoluir enquanto sociedade.

O meu avô, no subtexto da frase – “terapia é coisa de brancos" – quis dizer, entre outras coisas, que fazer terapia é um privilégio. Disse-o de uma forma tosca e rude, é certo, mas infelizmente tinha razão. E se nos dizem para pedirmos ajuda, têm de estar prontos para nos ajudar quando o pedido chegar. Porque não será culpa nossa se o sistema falhar connosco.

-Sobre o Carlos Manuel Pereira-

É um estafeta do humor. Entrega piadas em forma de texto, vídeo e áudio. Tem uma rubrica de humor na RDP África - "Na corda bamba" -, faz coisas para o 5 para a meia-noite, já atuou no palco comédia do NOS ALIVE enquanto o AGIR fazia soundcheck no palco principal. E agora escreve aqui.
Tem 29 anos e assina com três nomes para fingir ser, entre os amigos, um pequeno burguês. É o autor da crónica "Caderno de encargos".

Texto de Carlos Manuel Pereira
Fotografia de portuguesegravity
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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