*Esta é uma crónica do Carlos Manuel Pereira, inicialmente publicada na Revista Gerador de maio.
*Explicação: Diz, quem sabe, que um caderno de encargos é um documento que contém as condições de um contrato. Este caderno de encargos contém as condições de um contrato a ser celebrado entre mim e o leitor, e as condições são: eu escrevo, o leitor lê. Fim.
Pedem-me que tenha ideias porque foi assim que escolhi ganhar a vida. Obedeço. Sento-me, abro o bloco de notas e dou conta de que não tenho ideia nenhuma. Nem escrita, nem por escrever. Sirvo-me do verso de uma canção ouvida em tempos para me motivar – «Se não tenho ideias, não chove na vila» (Chibo; Nerve). Escreve. O quê? Não sei. Ligo o computador convicto de que surgirá algo, abro o Word e tenho novamente à minha frente uma folha em branco, e começo por isso mesmo: «Tudo começa com uma folha em branco.» Agora escreve. O quê? Qualquer coisa. OK. Em tempos, idealizei um projeto, que, depois de consumado, calhou pensar-se na sua comercialização. Numa sala com pessoas sentadas à volta de uma mesa, como costuma ser, houve alguém que, a dada altura, para contra-argumentar o que eu havia dito, me disse, num tom pouco simpático – «mas tu és só o gajo da ideia» — como que me pondo no meu lugar, como que me fazendo crer que ser «o gajo da ideia» é algo de somenos. Já lá vão alguns anos e ainda hoje esta frase ecoa na minha cabeça. OK, agora escreve. Estou a fazê-lo. Continua.
Nem sempre é fácil ter ideias. Talvez seja por isso que quando se pergunta por algo ou alguém é muito comum recebermos como resposta: «Eu não faço ideia.» As pessoas estão a par da dificuldade que é o negócio das ideias, mesmo quando não é um negócio. Por isso, à primeira oportunidade apressam-se a distanciar-se e deixar claro que nada têm que ver com esta espécie de máfia composta pelos fazedores de ideias. Talvez com medo de serem contagiados pela arrogância típica de quem consegue chegar primeiro que os outros, ou, por outro lado, com medo pela forma rude e arrogante como se trata quem chega primeiro e verbaliza isso com orgulho. Ou simplesmente por ter presente a noção de que é realmente difícil ter uma ideia. Uma boa ideia.
Confesso que ouvir alguém responder à pergunta, «sabes das minhas meias?», com um «não faço ideia», deixa-me tentado a equiparar uma «ideia» a um palmier e avanço para o estado seguinte que é o de tristeza por ainda não haver nenhuma agência de comunicação com o nome «Ideias de Fabrico Próprio».
Se há quem não faça ideia, deve haver quem as faça, certamente. Não andará muito longe do processo de fazer um palmier. Juntam-se os ingredientes certos, mete-se a mão na massa e sairá dali qualquer coisa. Com a diferença de que não há uma receita para as ideias, ainda que haja quem pense o contrário.
Escreve. Não consigo. Desliga a televisão. Pode ser que me surja algo a ver as notícias. As notícias já não são notícias, são notas de rodapé, desliga a televisão.
Onde vais? Buscar água. Senta-te e escreve. Não tenho ideias. Qualquer um tem uma, tenta. OK. Uma ideia depois de executada está ao alcance de qualquer um, é um facto. Mas, antes de ganhar forma, passa tempo connosco no banho, no sofá a ver um filme, no silêncio de um jardim, durante o passeio do cão, ou na agitação de um snack-bar entre um café pingado e um café curto com cheirinho. Antes de ser de todos, ela é nossa por breves momentos. A ideia é algo tão precioso que consegue ter à sua volta o verbo «ter» e «fazer». É o nosso verbo «to be» sem o ser.
Onde vais? Dar de comer ao cão. Isso soa a desculpa. Não é, eu tenho um cão. Que não para de olhar para mim enquanto penso no que escrever. Não penses, escreve. Não tenho ideias, e o cão tem fome. Dá-lhe de comer e volta para escrever. Preciso de ligar à minha mãe, ainda não falámos hoje. Isso soa-me a desculpa. Não é, eu tenho uma mãe e ainda não falámos hoje. Escreve. Se ao menos tivesse um amigo com quem trocar umas ideias… Escreve!
Não se fazem ideias, mas trocam-se ideias. As ideias vivem num estado avançado. O estado sustentável que alguns gostavam de aplicar aos seus vestuários, de forma a proteger o ambiente, onde o comércio como o conhecemos deixava de existir dando lugar a trocas. As ideias há muito que habitam nesse universo, assim se vê novamente o valor de uma ideia. Para não dizer que consegue ser um palmier e uma caderneta de cromos em simultâneo.
Sai do Twitter! Estou a ler uma notícia. Isso é uma manchete, sem corpo de texto, vais continuar sem saber nada a achar que sabes tudo. Escreve. Sobre o quê? Sobre isso. Não tenho ideias. Já todos percebemos, mas começaste por dizer que és o gajo das ideias. Não, sou «só o gajo da ideia», lembras-te? Não te vitimizes, escreve. É o mal deste país, quem reclama por um lugar é descrito como vítima. Tem juízo, vítima é quem sofre, não tu. Mas eu sofro se não tiver ideias. E se as tiver também. Escreve!
Qual é a pressa? A do costume, o que estás a fazer? A ler outra notícia. Não leias. Porquê, preciso de ideias. As notícias perderam rigor em detrimento da rapidez. Apenas se preocupam em ser os primeiros, isto agora é uma corrida. É tudo uma corrida, até eu sou um atleta, que se não chega primeiro, não come, não tem palmas, nem aprovação. Se não chegas primeiro, perdes o lugar, perdes o destaque, perdes dinheiro.
Insistindo em chegar primeiro, sendo essa a tua principal preocupação, corres o risco de perder a confiança de quem te segue. Não refletes nem convidas a reflexão. Vemos isso nos meios de comunicação e nos artistas, ignorando que a pressa facilmente se torna a inimiga da perfeição. É o negócio das ideias e dos jornais. Mas cabe ao jornal informar-te. E comer. Comer, comem-te a cabeça a repetir uma notícia até à exaustão. Agora escreve! Sobre o quê? Não sei, és tu o gajo das ideias.
NOTA: Se ao leitor o texto soar confuso, que me perdoe a afronta, mas pediram-me que escrevesse sobre o jornalismo lento, que é aliás o tema do editorial deste mês, mas entre a falta de ideias, e a não valorização de quem as tem, saiu isto. Bem sei que só tinha uma função, falhei. Daqui a uns tempos, voltarei a tentar. Até lá!
-Sobre o Carlos Manuel Pereira-
É um estafeta do humor. Entrega piadas em forma de texto, vídeo e áudio. Tem uma rubrica de humor na RDP África - "Na corda bamba" -, faz coisas para o 5 para a meia-noite, já atuou no palco comédia do NOS ALIVE enquanto o AGIR fazia soundcheck no palco principal. E agora escreve aqui.
Tem 29 anos e assina com três nomes para fingir ser, entre os amigos, um pequeno burguês. É o autor da crónica "Caderno de encargos".