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Carta do Leitor: As vagas

Quando a primeira vaga se estendia pela ocidental praia lusitana, como um vasto lençol ondulante,…

Texto de Leitor

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Quando a primeira vaga se estendia pela ocidental praia lusitana, como um vasto lençol ondulante, as gaivotas abandonaram os rochedos e procuraram abrigo nas reentrâncias das escarpas, perseguidas pela intempérie, que sobre elas desferia os relâmpagos que guardava na sua nebulosa aljava. No instante em que o céu aspergiu as ruas com a chuva que a meteorologia prometera, abriram-se, a um tempo, os guarda-chuvas. Enquanto um transeunte desprevenido completava, a passo lesto, o caminho que distava desde o carro até ao prédio, o casaco sobre a cabeça, na mão a chave para apressar a entrada salvífica no edifício, já a vizinha do primeiro andar se apressava a recolher a roupa que estendera no arame. Os comerciantes recolhiam os toldos das montras, o empregado do café empilhava, uma a uma as cadeiras da esplanada, do restaurante trouxeram para dentro o quadro com a ementa para o dia, antes que as bátegas de chuva apagassem a inscrição.

À aproximação da intempérie, as empresas encerraram, as aulas foram suspensas, cancelaram-se as feiras e os concertos. Em duas semanas, a pandemia escorreu pelas estradas, submergiu as praças, circundando as habitações. Os rios engrossaram o seu caudal e, correndo túrgidos, romperam as barragens, e derrubaram as pontes, formoso Tejo meu, quão diferente te vejo e vi, me vês agora e viste. Nos passeios vidrentos das águas que calcetavam os caminhos, observámos, refletida, a fragilidade da nossa condição. Em poucas semanas, romperam-se as fontes do abismo e abriram-se as cataratas do céu. Durante mais de quarenta dias e quarenta noites, a chuva caiu sobre a terra – arca não tínhamos onde embarcar, dois a dois, até que cessasse dilúvio.

Três meses volvidos de chuvosa estação, ainda a terra negrejava e secava a casaria, ao sol já descoberto, de novo içámos as gelosias. Com a máscara escudando a face, transportando no bolso o frasco de álcool gel, franqueámos a soleira da porta, decididos a caminhar a céu aberto, enfrentando, apreensivos, o perigo das vagas incertas. Mas, entretanto, também o mar irado investiu em ombros sobre os seus pórticos, da fechadura os mecanismos estilhaçaram, cederam os gonzos, tombaram os umbrais e o mar derrubou indómito os limites em que fora aferrolhado desde os dias da criação. A cavalaria do mar pandémico fugiu em debandada. Cavalos selvagens de musculosos flancos galoparam furiosamente em direção à costa, os cascos ressoando na terra como um tambor, as crinas esvoaçando infladas pelos ventos de novas infeções.

Assim se encresparam as vagas – feras erguidas sobre as patas traseiras, que avançavam rugindo, assestando as garras ameaçadoras na nossa direção. Novas ondas se arqueariam convexas, para depois se inclinarem côncavas, na nossa direção. Víamos Camões debater-se nas correntes, tentando salvar, a custo, o canto que molhado e Ulisses, em nova odisseia, vogando entre Cila e Caríbdis, em atribulada navegação. Entre vagas desmedidas, que a qualquer galé fariam sombra, o mísero batel, que, já a custo, baloiçando, se mantinha à tona, com este gotejar constante ligeiramente se inclina, seguidamente mais um pouco, até que a insustentável leveza de uma gota, acrescentando-se ao peso das demais, fez adernar, por fim, a pequena embarcação. No pélago, não vimos pérolas, nem conchas, nem corais – divisámos apenas as ruínas e os despojos de navios naufragados. As vagas da pandemia, engolfando o ímpeto furtivo dos corsários, avançaram em fileiras, como um exército invasor decidido a saquear as enseadas.  Entretanto, com a chegada do inverno, desceram as temperaturas, a maré tornou a subir. Já o processo de vacinação clareava o horizonte da pandemia, como sol que, perseguindo a rósea aurora, percorria a superfície serena das ondas, afastando as nuvens, novamente se aproxima outra vaga, veloz, incerta e temerosa. Nas profundezas, ainda subsiste a respiração desse dragão resfolegante, que, ora retrai, ora faz avançar, as ondas da pandemia. Neste fluir e refluir, uma onda a outra onda se sucede, uma a outra se repete, uma na outra se enrola e tropeça, atirando para a praia os destroços da sua fúria. A pandemia vai entoando, num crescendo e decrescendo, as estrofes deste requiem, como um cântico de um monge em lacrimosa salmodia.

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Texto de Carlos Lemos

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