Eu sou autista. Tenho hipersensibilidades e uso os mesmos abafadores de ruído que trabalhadores de obras pesadas, mas para ir ao supermercado – este é apenas um exemplo de como algumas pessoas autistas se adaptam para navegar neste mundo. Felizmente, as pessoas não se importam com a forma como alguém se veste para ir às compras. Outros autistas precisam usar chapéus por causa da luz. Aqui talvez já seja mais difícil navegar: ao nascermos somos inseridos numa cultura que se desenvolveu a partir da experiência e ideias da maioria, e como tal impõe as suas percepções sobre as nossas ações individuais - e algumas pessoas na nossa cultura ainda vêm o uso de chapéus em espaços interiores como algo rude. Já vi testemunhos de autistas que precisam de óculos de sol mas que têm receio de pedir permissão para os usar no trabalho.
Alguns autistas têm dificuldade no contacto visual. Parece um detalhe inofensivo, mas em criança um professor disse que eu era “armada em boa” porque não olhava os outros nos olhos – uma pequena gota de como é crescer com autismo na escola. A nossa forma de ser é vista como “agir de forma suspeita”, o que pode levar a problemas. Até hoje, há contextos formais em que me forço para agir como se fosse “neurotípica” (termo que por vezes se usa para falar de pessoas sem condições mentais – oposto de “neurodivergente”). Por exemplo, falo menos, ou fico calada, para não me bloquear tanto nas palavras.
Usa-se o termo “neuronormatividade” (neuronormativity) para definir a imposição de valores e normas desenvolvidos numa sociedade feita para “neurotípicos” em pessoas cujos cérebros não agem como as delas, semelhante à mais conhecida Heteronormatividade. Por vezes o termo “neuroqueer” é usado quando se pensa a sua interseccionalidade. É importante notar que alguns destes termos são usados com significados fluidos e tem discordâncias associadas, mesmo dentro das comunidades. Outro exemplo é “Neurodiversidade”, um movimento e paradigma pela aceitação da diversidade neurológica humana que vê as pessoas neurodivergentes como parte dela e não como excepções.
Como entendo ser vista como uma excepção? Não digo que medidas particulares que ajudam pessoas com deficiência não devam existir, mas se eu fosse vista como parte da diversidade humana em vez de uma excepção médica, pelo menos algumas medidas, como eu poder sair da aula quando precisava de uma pausa, podiam ser logo realizadas sem eu ter de passar por um processo burocrático (um entrave para recebermos ajuda).
Por vezes, em meios neurodivergentes, usa-se o argumento de “em outras culturas é rude olhar as pessoas nos olhos” de forma a validar a forma como nos é mais confortável ser. Eu concordo com o argumento, mas não com a premissa do qual ele nasce: sabendo que as formas do corpo humano, e por extensão a sua neurologia, são variáveis na construção da cultura das sociedades, porque é que temos de olhar para culturas que percecionamos como diferentes da nossa para legitimar ações que tomamos? Um pequeno grupo de amigos tem a sua própria cultura, diferente de outro grupo até na mesma vila: formas de agir, piadas internas, lembranças, lugares importantes, interações. Cada gesto — dar as mãos, um beijo na testa, estar deitado encostado na perna de alguém — apenas tem as pessoas que nele participam como autoridades para decidir o que significa. Não pode ser algo imposto de fora por uma cultura dominante, o que chamamos de normatividade. Assim, a personalidade e modo de ser de uma pessoa não é senão a sua cultura, individual? Porquê forçar alguém a mudar algo que não magoa ninguém?
Desconstruir a neuronormatividade faz parte do pensar da desconstrução do capacitismo e de normas sociais. Em espaços pela diversidade, onde me sinto mais livre, em vez de não falar, deixo-me bloquear nas palavras as vezes que for preciso. Não tenho de olhar as pessoas nos olhos. Não estou constantemente a pensar em cada gesto ou palavra. E uso os chapéus que costurei, dentro das salas.