Estamos tão habituados a olhar para os excessos de Trump ou Bolsonaro que nos esquecemos que, afinal, fazem parte de outro continente. Temos um Oceano a dividir-nos, felizmente. Aqui tão perto de nós, na UE, há países que se estão a esquecer o que é viver numa democracia. A Polónia, onde foi eleito Andrzej Duda, candidato do partido ultra católico “Lei e Justiça” defende que o movimento LGBT “é pior do que o comunismo”. Activistas colocam bandeiras arco-íris em monumentos em Varsóvia e são perseguidos. A Igreja católica deste país, na mesma semana em que o Papa Francisco defendeu o casamento entre homossexuais, incentiva a criação de clínicas para ajudar as pessoas que quiserem voltar a ter a sua orientação sexual “natural”. Este discurso homofóbico disseminou o ódio em todas as camadas da sociedade polaca.
“Vai sempre haver sofrimento no Mundo”. Uma amiga tenta esvaziar - ou confortar - as minhas preocupações crescentes com o estado das coisas em 2020. Entretanto, na Polónia o aborto volta a ser ilegal. Entretanto, na Universidade do Porto alunos brasileiros são alvo de ataques xenófobos. Entretanto, murais de escola e universidades da minha cidade são pintados com frases racistas. Sim, vai sempre haver sofrimento no Mundo mas cruzar os braços apenas nos ilude acerca da nossa incapacidade para fazer algo.
Levanto-me do conforto do meu sofá e espero pela minha amiga polaca na esquina da Avenida Almirante Reis, empunhando um conjunto de palavras que me ligam a Enrique Vila-Matas - as viagens, o pânico de falar em público e os escritores. Erguido de pé encontro-a e partimos em direcção à Praça da Figueira para nos juntarmos, a milhares de quilómetros de distância, aos protestos em massa nas principais cidades polacas contra a lei que criminaliza qualquer tipo de aborto, até por malformação do feto. Os nossos passos seguem firmes, não para trás - pois isso seria estúpido visto não sermos caranguejos - mas 2020 surpreende-nos, ainda mais, e confirma que há governantes que acham ser possível caminharmos de costas voltadas para o futuro. Pensando que o Estado pode decidir sobre a liberdade do corpo dos seus cidadãos. Um Estado que define o dogma da ideologia como substituto à decisão humana, obriga o nascimento de crianças incapazes de sobreviver ou até de fetos com malformações.
Em pleno protesto, mantemos as distâncias de segurança e no final da manifestação, junto aquela gente toda, concluo que é possível não entender palavra alguma mas partilhar uma convicção: a liberdade.
Adormeço com a Polónia no pensamento. Imagino um vão de escadas, num prédio de Varsóvia, onde uma mulher está deitada, de pernas abertas. Sangue escorrendo pelos braços do médico, na escuridão clandestina, faz o que pode para aliviar toda aquela situação, desumana e humilhante. Termina tudo como num relâmpago. A mulher, dormente, em pânico volta para sua casa, fumando um cigarro num silêncio total. Continua a acreditar que se tivesse mais dinheiro teria ido ao estrangeiro. Varrendo para debaixo do tapete, tenta resolver o problema que ninguém deseja encontrar - o aborto.
Ninguém quer fazer um aborto. Ninguém apoia o aborto. A questão é só esta: deve ser criminalizada a mulher e o homem que, sem condições para “resolverem de outra maneira”, queiram ter a possibilidade de escolher quando ter um filho? Devem ou não ter a possibilidade de decidir o futuro da sua família? E podem usufruir das condições adequadas para o consumarem? Sabemos que estas proibições não previnem problema algum e os números comprovam-no. Em 2019, o números de abortos em Portugal foi o mais baixo desde a sua legalização.
Acordo e já não sou capaz de distinguir o que é imaginação e real. Tenho apenas uma certeza: se os direitos humanos forem violados na Polónia e na União Europeia, podem ser violados em qualquer lado.