Há três anos, auto-diagnostiquei-me com cleptomania artística, doença sem cura, crónica patologia do ser. Muito me custou o diagnóstico como sempre me custam as infelizes descobertas da alma. A isso se chama crescer, creio eu.
Por cada roubo deixei uma lágrima, por cada vírgula no lugar de dois pontos precisei de outros dois no meu peito ferido.
Sofri.
Roubei ideias.
Sofri.
Roubei tanta coisa na minha vida.
Até que uma Jangada de Pedra veio a flutuar até mim. Trazia uma mensagem:
“Na nossa vida nunca roubamos nada, é sempre na vida dos outros”.
Achei consolo egoísta nesta máxima, mas não me curou a desolação.
Até que um Gonçalo M.Tavares veio a flutuar até mim. Trazia uma mensagem:
“É original, na literalidade do étimo, o que vai buscar à origem.”
Graças às palavras de ambos, Saramago e respetivo prémio, perdoei-me pelos meus furtos, mas o perdão próprio não chega, é só um "per", está incompleto, falta o “dão”. O "dão" em perdão vem dos outros, são os outros que no-lo dão.
Fui buscar o dão em perdão:
“Saramago, pequei contra ti, aceita-me como teu ladrão.”
Saramago não falou, falou a obra por ele. A obra perdoou-me.
Morre o criador e a obra fala, assim me explicou Umberto Eco.
Um dia, quando já não estiver cá quem falou, também este texto será meu eco, vestirá estola e escudo, e defender-me/se-á à sua maneira.
Até esse dia chegar, sigo caminho pela estrada do roubo, ora desesperando porque roubei a mais, (quantas vezes não me acontece desesperar porque roubei a mais:
eis uma delas, a 4 de Janeiro de 22 — Cala-te António Lobo Antunes, cala-te seu monstro, quero falar e és tu a falar por mim, (...) vade retro, onde está a minha voz, a originalidade não é isto, isto é copiar, vai-te embora, por favor.”)
ora feliz porque roubei a justa dose, a quantidade ideal, como fiz com o título desta crónica.