A intuição aparece definida no dicionário português por conceitos como “percepção instintiva”,“conhecimento imediato”, “pressentimento da verdade”. Diz-se que as mulheres têm capacidades intuitivas mais desenvoltas do que os homens; neurologistas chegam a comprovar que o tráfego de impulsos nervosos do “corpo caloso”, denominação da ponte que faz a ligação entre os dois hemisférios do cérebro, é maior nas mulheres. (Martin Portner, médico Neurologista).
Para efeitos deste texto, as diferenciações entre géneros são para mim ténues dissimilitudes, ou mais ou menos abstractas. Com isto quero dizer que negar a intuição será sempre consequente, impactante, e independente das características do sujeito. Talvez as mulheres estejam inatamente mais sensíveis à questão, mas quem já provou deste feito inadvertidamente pusilânime, o de abafar a voz interior, talvez possa identificar-se com estas linhas.
Embarquemos na experiência.
Quando nos adentramos em marés profundas de reflexão, a intenção é que daí se evidencie a promissora conclusão libertadora, ou, antagonicamente, em situações de tomada de decisão rápida, achamos sempre que obedecemos ao nosso melhor impulso. A situação torna-se sim dolorosa quando surge o “bem te disse” depois de um passo em falso, especialmente se ele é dito (ou ouvido) por dentro.
A queda é vertiginosa, sabíamos perfeitamente que andavamos a reunir toda uma estrutura organizada de factos e artefactos do pensamento, para responder positivamente a uma determinada situação, quando na realidade, com tudo isso, a única coisa que acobertávamos herculeamente era a tal vozinha que sempre nos sussurrou que não, desde o ínicio. Tal como numa corrida de obstáculos, ou numa atividade de tracking selvagem, as indicações de caminho estavam lá sempre, o caminho desenhou-se com muitas red flags, acenderam-se semáforos, soaram sirenes, ruidosas, visíveis, de luz muito vermelha, perentórias, evidentes… mas embrulhámos tudo isso no bolso, como quem não quer a coisa, bem arrumado, e vamos em frente, salto de cabeça.
(esfolamo-nos na primeira borda da piscina, da parede, do muro, ou estatelamo-nos no meio do chão, no piso mais brilhante, que é para doer mais e ser bonito).
O tombo é visto de fora com algum regozijo, os espectadores sabem sempre tudo, levantam-se, manifestam-se, agrupam claques e hasteiam cartazes. Há primeiros-socorros a entrar em campo, algumas flores, alguns tomates podres. Tu cais, levantas-te, voltas a cair, engoles olhares reprovadores, daqueles que vêm do reflexo da poça no chão. Aprendes, mas não é simples. Reconstruir um barco leva muitas peças de anunciado facilitismo de ikea, mas que não trazem instruções; são puzzles de milhares de peças mas sem imagem de fundo. Além disso, um veleiro pode passar a ser uma lancha, ou um iate perder o motor. Há impactos no percurso, marcas e cicatrizes mal escondidas que obrigam à reinvenção.
Sentir que se está a negar a intuição tem o sabor peculiar de pisar ovos sem os querer partir, de engolir pirolitos no mar, de torcer qualquer coisa para o lado errado; guinchamos dores de caimbra sem que ela exista, jorramos sangue sem que ele corra. É saber que algo não está nada bem, mas continuar no mesmo caminho, pé ante pé, e cultivar atração pelos bramidos ecoantes que indiciam o precipício.
Tal e qual como se nadássemos contra a corrente, neste trajeto cobarde e consciente da decisão errada, acontece que perdemos a força física, a inércia, tornamo-nos lassos, insipientes, deixamos em terra quem somos, defronte ao alto mar; porque nos estamos a digladiar com as emoções e o pensamento, porque nos estamos a negar.
No desenlace da situação, temos ainda que receber um novo convidado na equação, que será o sentimento de culpa, previsto. A lógica do 1+1 ser 3 faz-nos cair na real, encostar o pescoço à gilhotina, aceitar. Já sabíamos que ia ser assim, a poderosíssima intuição dá de si, preterida, em delay.
Para concluir, a intuição existe, acontece toda uma parafernália de bastidores na nossa psique humana que faz parte de nós, sempre, e que não deve ser preterida. Em situações em que a garganta comece a picar, no momento em que nos custar a engolir, é sinal que há uma entropia natural a precisar de alinhamento. Se algo não fluir, merece todo o nosso foco. Ao primeiro tremor de terra, abriguem-se por baixo de vocês mesmos. Há monólogos que valem a pena; se tivermos que levantar em riste a espada contra o espelho, é quando as contas se tornam mais difíceis de prestar.