Ninguém brincava com Raúl. No recreio da escola, Raúl era de tal modo ignorado que até acreditava ser invisível, não fosse a sombra que o seu perfil formava nas paredes e no muro da escola. Para consolar a solidão, Raúl imaginava que as sombras eram de castelos e de dragões, ou ainda, navios de piratas e baleias. Numa manhã em que soprava um vento muito forte, pareceu-lhe ver o canto de uma sombra numa parede a descolar-se, como a folha de papel de um cartaz velho. Aproximou-se devagar e viu que sombra tremia de alto a baixo e estava efetivamente a tentar soltar-se da parede. Observando-a com mais atenção, viu que era o perfil da árvore que crescia no recreio da escola. Com todo o cuidado que os seus dedos de menino lhe permitiam, levantou primeiro uma ponta, descolou-a por inteiro e depois, discretamente, afastou-se com ela debaixo do braço. Nenhum dos outros rapazes reparou nele porque, como era habitual, Ninguém brincava com Raúl.
Quando regressou a casa, quis mostrar aos pais a sua descoberta, mas eles limitaram-se a sorrir, por já estarem habituados às suas histórias rocambolescas. Determinado a provar-lhes que, pelo menos daquela vez, não era apenas o fruto da sua imaginação, Raúl desenrolou a sombra no chão da sala, mergulhando-a na penumbra. Assustados, os pais ordenaram-lhe que acabasse com aquela brincadeira e que deitasse fora o que quer que fosse que ele tinha levado lá para casa. Resignado, Raúl guardou-a numa gaveta e, por algum tempo, esqueceu-se completamente dela.
De regresso à escola, Raúl começou a olhar para a sombra dos seus companheiros. Reparou que a sombra os seguia para todo o lado e que imitava todos os seus gestos. Se não podia ter um amigo, então uma sombra que fosse assim obediente e que também soubesse jogar e brincar, era mesmo o que ele desejava! Começou a segui-los pelo recreio e quando um dos rapazes parava de correr atras de uma bola, por exemplo, Raúl baixava-se rapidamente e num ápice, pegava na sombra por uma ponta e afastava-se com ela debaixo do braço.
Foi assim que ao fim de alguns dias, quando chegou a casa, Raúl trazia consigo quase toda a turma – isto é, as sombras dos alunos. Guardou-as na gaveta com a sombra da árvore e, por algum tempo, esqueceu-se completamente delas.
Alguns dias mais tarde, quando Raúl chegou à escola, deparou-se com uma enorme confusão. Os pais dos outros alunos, alguns com os filhos pela mão, exigiam falar com o diretor para lhe pedir uma explicação e a devolução das sombras das crianças. Era tanta a confusão que ninguém reparou que Raúl era o único rapazito que ainda tinha uma sombra. Indiferente à revolta de uns e à aflição de outros, senão de todos, Raúl sentiu que tinha sido feita justiça e que daquele modo, os tinha castigado por o terem ignorado durante todo aquele tempo. Já nem se importava que o deixassem sozinho durante os intervalos, e percorria o recreio à procura de mais sombras para juntar à sua já vasta coleção. Contudo, com o correr dos dias, já não restavam nenhumas para capturar: todos os alunos, os professores e os auxiliares, um gato adotado pela escola, assim como as árvores já estavam enroladas na gaveta do seu quarto. Raúl andava tão entretido que já nem reparava que ninguém olhava para ele na escola ou no terreiro – até parecia que se tinha tornado invisível, ele próprio uma sombra, talvez.
Uma noite, Raúl sonhou com as suas sombras. Algumas estavam furiosas porque ele andava de tal modo empenhado em as recolher que se esquecera de brincar com elas. Outras lamentavam-se porque sentiam saudades dos meninos e dos professores que as acompanhavam nos dias de sol. No seu sonho também apareciam os alunos da escola. Raúl via-os no recreio e no terreiro da vila, sentados no chão e nos bancos, tristonhos e calados porque os seus companheiros, as sombras, tinham desaparecido. Raúl acordou banhado em lágrimas. Sentiu-se tão arrependido que jurou a si mesmo que naquela manhã, ele as restituiria e que talvez deste modo, ele fosse considerado um herói e que todos o aceitassem como amigo.
Na manhã daquele dia, Raúl entrou triunfalmente na escola. Encaminhou-se imediatamente para o centro do recreio e, de pé sobre um banco, declarou com solenidade que tinha encontrado as sombras extraviadas e que ele, Raúl, estava ali para as restituir aos seus donos, mas que não exigia nada em retorno, pois confiava na gratidão e na amizade com que decerto o iriam recompensar. Os alunos e os professores em redor olharam casualmente para o local onde estava Raúl e depois afastaram-se. Como era aquilo possível? Já não queriam as suas sombras? Com quem iriam elas brincar? Ao fim de tantos anos passados na companhia das suas sombras, como podiam eles ignorá-las?
Foi então que Raúl constatou, horrorizado, que a sua própria sombra não provinha de nenhum corpo.